Em 2018, Pablo Klein, um gerente de produtos sênior com passagem por empresas como Shopify, Sage Accounting e Tide Bank, percebeu que faltava no mercado uma plataforma de pagamentos transfronteiriços que trouxesse confiabilidade aos clientes. Baseado em seu know-how na indústria de tecnologia financeira, ele reuniu uma equipe de especialistas e começou a construir essa solução.
Surgia a Primefy, fintech brasileira concebida para facilitar transações globais com uma abordagem local. Hoje, a empresa tem forte atuação mundo afora, alcançando países como Argentina, Canadá, China, Espanha, Estados Unidos, Inglaterra, Japão, México e Portugal.
Para Klein, o grande diferencial da plataforma é a “obsessão” pela experiência do usuário (UX) e sua capacidade de eliminar fricções. Principalmente para os ICPs — Insurance Core Principles, um conjunto de princípios e padrões que definem um framework global para a supervisão do setor de seguros.
“Oferecemos soluções que atendem tanto empresas estrangeiras que desejam operar com o Pix Internacional quanto empresas brasileiras que buscam expandir sua operação internacionalmente, capturando em diferentes moedas e facilitando pagamentos globais de forma simples e eficiente, sem a necessidade de entidades locais adicionais”, diz o CEO da Primefy.
A fintech, que atingiu o ponto de equilíbrio em janeiro de 2022, atua apenas com recursos próprios – embora já tenha sido abordada por fundos de investimento. E, mesmo sem divulgar cifras publicamente, Klein afirma que o crescimento é de dez vezes ao ano.
O SALTO DA INTERNACIONALIZAÇÃO
A Primefy não é um caso isolado. Com 1.592 empresas operantes, o Brasil responde por 58,7% das fintechs ativas na América Latina, o que faz do país o principal hub de inovação financeira na região — muito à frente do México, com 20,7%, e da Argentina, com 6,5%. Ao todo, as startups nacionais captaram US$ 10,4 bilhões ao longo dos últimos dez anos, como revela o Fintech Report, elaborado pela plataforma Distrito.
Muito do domínio das fintechs brasileiras sobre os mercados vizinhos (ou mesmo nem tão próximos) se deve à sua alta capacidade técnica. Mas elas também são impulsionadas pelo cenário favorável. Um dos trunfos do país, além do volume de mercado, é o suporte dado pelos órgãos reguladores. Essa segurança é essencial para que os negócios daqui estejam em um estágio avançado no que diz respeito a meios de pagamento, crédito, computação em nuvem e inteligência artificial (IA).
Para se ter uma ideia de quão promissor é esse nicho, duas de cada três startups do setor têm planos de internacionalização. A projeção é da pesquisa Fintech Deep Dive 2024, realizada pela consultoria PwC Brasil em parceria com a Associação Brasileira de Fintechs (ABFintechs). O levantamento indica também que 65% das fintechs que atuam no exterior estão focadas exclusivamente em negócios B2B, tendo como principais clientes empresas de médio e grande porte.
Willer Marcondes, sócio da PwC Brasil e um dos consultores responsáveis pelo estudo, destaca que as startups com maior representatividade global são as que estão explorando ofertas de bancos digitais e meios de pagamentos, seguidas pelas que atuam com tokenização e cripto (ativos ou moedas). Os mercados mais visados, além da América Latina, são América do Norte e Europa, e uma estratégia comum é replicar a operação já estabelecida no Brasil em outras regiões.
“Entre os fatores que favorecem essa tendência, podemos citar nosso mercado financeiro, que é muito inovador, tendo como exemplos o Pix e Open Finance. Mas há outros, como a capacidade do brasileiro de se adaptar de forma mais fácil a culturas diferentes, o lado empreendedor dos nossos executivos e sua habilidade em lidar com ambientes econômicos e institucionais de grande volatilidade”, avalia Marcondes. Head de Comunidade da ABFintechs, Rogerio Melfi também atribui parte do êxito das fintechs nacionais lá fora à estrutura do ecossistema, com oportunidades a serem exploradas em diversas áreas. E acrescenta que a experiência bem-sucedida com o Pix abriu portas para a internacionalização das chamadas “techfins” — startups de tecnologia que ingressaram no setor financeiro.
“São empresas que desenvolvem soluções, como plataformas capazes de processar um alto volume de transações com eficiência e segurança, além de oferecer ferramentas que utilizam inteligência artificial para detectar e prevenir fraudes em tempo real. Essas capacidades tecnológicas tornam as techfins brasileiras candidatas a internacionalização”, observa Melfi.
É o caso da Pismo, empresa fundada em 2016 por quatro empreendedores com ampla experiência em tecnologia financeira e que fornece uma plataforma de processamento nativa em nuvem para produtos bancários e de pagamentos. Com escritórios no Brasil, EUA, Índia, Reino Unido e Singapura e operações em mais de dez países, a fintech atende a clientes como Itaú, BTG, B3, Citi e @Pay. No início de 2024, foi adquirida pela Visa Internacional.
O executivo Rodrigo Melato, que ingressou na Pismo como vice-presidente de vendas no Brasil e América Latina e, mais recentemente, assumiu o cargo de VP Global para liderar a estratégia de expansão da empresa, ressalta que ela foi concebida para ser internacional “desde o dia 1”. “A plataforma e as documentações de desenvolvimento foram criadas em inglês, para facilitar a implementação em diversos países. A plataforma é baseada em microsserviços, o que permite combinações que façam sentido para cada cenário e legislações locais”, explica.
Para ele, o sucesso das fintechs brasileiras se deve à maturidade tecnológica e operacional do setor. “No Brasil, passamos por várias mudanças no cenário econômico, o que levou a termos uma tecnologia bastante avançada, tanto em termos de soluções quanto em segurança. Contamos também com uma quantidade significativa de profissionais qualificados, o que tem ajudado todo o mercado a se destacar internacionalmente.”
BRASILEIROS NO VALE DO SILÍCIO
Entre as fintechs criadas por brasileiros, a Brex talvez tenha a trajetória mais impressionante. Fundada em 2017 por Pedro Franceschi e Henrique Dubugras no Vale do Silício, a empresa se destacou no mercado norte-americano por oferecer cartões de crédito corporativos para empresas de inovação, como Airbnb e Class Pass. A fintech virou um decacórnio (designação dada a startups que valem US$ 10 bilhões ou mais), chegando a ser avaliada em US$
12,3 bilhões em 2022, após uma rodada de financiamento liderada por investidores como Grenoaks Capital e TCV. Com uma receita anual superior a US$ 500 milhões, segundo a Bloomberg Línea, a Brex abriu outros escritórios nos EUA e no Canadá antes de começar a contratar no Brasil, em Israel e no México.
A falência do Silicon Valley Bank, no início de 2023, trouxe uma grande leva de clientes para a Brex. Mas a retração do venture capital, que ficou conhecida como “o inverno das startups”, em meio à disparada dos juros globais, atingiu em cheio a companhia, que começou a crescer em ritmo mais lento e teve que demitir 282 funcionários — cerca de 20% de sua força de trabalho. Um ano antes, já havia dispensado outros 10% do quadro.
“Crescemos muito rapidamente, o que tornou difícil crescer na mesma velocidade de antes”, escreveu o CEO, Fransceschi, em um e-mail enviado aos funcionários, ao anunciar uma série de mudanças na estrutura da empresa.
Uma das estratégias da Brex para não encolher e levantar mais recursos foi diversificar seu negócio — no caso, para um software de gestão de despesas, que ainda representa uma fatia pequena da receita total. Em 2023, a empresa se preparava para um IPO (abertura de capital) em 2025. No mesmo ano, porém, Dubugras argumentou que seria preferível retomar a lucratividade, antes de “puxar o gatilho”.
MUDANÇA DE RUMO
Evidentemente, a volatilidade não é exclusiva do Vale do Silício. Mesmo sendo um terreno fértil para as fintechs, a América Latina também pode ser um mercado arriscado. Depende muito do momento e do modelo de negócio.
Um bom exemplo disso é a Velvet, fundada em 2021 como uma plataforma especializada em tran
sações secundárias de ativos ilíquidos (mais difíceis de negociar), vendendo a participação acionária de funcionários e ex-funcionários de unicórnios que querem se desfazer da posição. A empresa, que chegou a levantar US$ 200 milhões em financiamento de risco, tirou o foco da América Latina quando as altas taxas de juros começaram a afastar os investidores. No fim de 2023, a fintech optou por relançar seu produto, voltando-se para startups globais inovadoras. O novo público-alvo é formado por investidores de alta renda que investem em startups de capital fechado dos EUA.
Para essa mudança de estratégia, a Velvet firmou acordo com a Templum, empresa de tecnologia sediada em Nova York que desenvolve sistemas para a negociação de ativos nos mercados privados e de alternativos. “Hoje, nosso investidor, que tem patrimônio acima de US$ 10 milhões, já possui contas no exterior e busca uma diversificação, além dos produtos de prateleira do mercado financeiro tradicional do Brasil. Com essa parceria, a gente tem uma segunda via e consegue oferecer investimentos pontuais, em coisas que não é todo mundo que tem”, explicou o CEO e fundador, Carlos Naupari, em entrevista à Bloomberg Línea.
DESAFIOS ALÉM DAS FRONTEIRAS
Diante das necessidades do mercado, especialmente o latino-americano, a tendência é de que mais fintechs brasileiras busquem a internacionalização. Isso exige compreender a realidade, os hábitos e as necessidades de cada região.
Para superar desafios assim e escalar para além das fronteiras, é necessário ter um produto flexível, que atenda ao cliente de modo único. “Parte da operação precisa ser realizada localmente, mas há diversos elos da cadeia operacional que podem ser atendidos de forma centralizada. Isso ajuda a reduzir custos e também o risco desse processo de expansão”, argumenta Willer Marcondes, da PwC Brasil.
Rodrigo Melato, da Pismo, concorda: “O conhecimento local é sempre um grande desafio quando uma empresa começa a trabalhar em mercados externos. Como nossa solução foi criada baseada em microsserviços que podem ser combinados entre si, conseguimos oferecer, a partir da mesma plataforma, exatamente o que cada cliente precisa, em seu mercado foco”.
Pablo Klein, da Primefy, acrescenta que manter um padrão de excelência passa também pela contratação de profissionais locais que conheçam profundamente as dinâmicas culturais e regulatórias. “Esse é um dos maiores desafios que enfrentamos, especialmente para criar relações com empresas de maior porte e construir uma presença sólida em novos territórios”, aponta.
O conselho, aqui, é estabelecer parcerias locais para viabilizar o processo de internacionalização. Melfi, da ABFintechs, cita o exemplo da Alianza FinTech Iberoamérica, órgão que tem como objetivo integrar e colaborar com fintechs de toda a região ibero-americana, facilitando o intercâmbio de conhecimento e o acesso a novos mercados.
O especialista acrescenta que contar com programas públicos de consulados, como os existentes no Reino Unido, é uma maneira de superar barreiras regulatórias e culturais. “Pensar globalmente desde a fundação, investindo em tecnologia escalável que possa ser rapidamente ajustada para atender a diferentes requisitos, também é crucial”, diz ele, e acrescenta: “A personalização do produto e a capacidade de responder rapidamente às mudanças regulatórias permanecem como fatores-chave para o sucesso em múltiplos mercados”. //
O MERCADO DAS FINTECHS NO BRASIL E NA AMÉRICA LATINA
US$ 10,4 BILHÕES
Foi o valor que as fintechs brasileiras receberam em investimentos nos últimos dez anos. A quantia corresponde a 66% do total recebido pelas startups do segmento na América Latina, que foi de US$ 15,6 bilhões.
1.034 DEALS
O Brasil concentrou a maioria das rodadas de investimento, com 1.034 deals na última década. O número total na América Latina foi de 1.658.
US$ 5,7 BILHÕES
O pico dos investimentos ocorreu em 2021, impulsionado pela digitalização dos serviços financeiros durante a pandemia, com US$ 5,7 bilhões captados em 363 rodadas.
298 NOVAS EMPRESAS
Já o ano que registrou o nascimento do maior número de fintechs foi 2019, com 298 novas startups.
2.712 FINTECHS
Atualmente, a América Latina tem 2.712 fintechs ativas, sendo 1.592 delas brasileiras.
US$ 5,3 BILHÕES
O Crédito ocupa o primeiro lugar entre as categorias com maior número de fintechs (477) e 18% do total de fintechs na América Latina. Porém, em volume de investimentos, a liderança é da área de Serviços. digitais (US$ 5,3 bilhões em captação).
“A PERSONALIZAÇÃO DO PRODUTO E A CAPACIDADE DE RESPONDER RAPIDAMENTE ÀS MUDANÇAS REGULATÓRIAS SÃO FATORES-CHAVE PARA O SUCESSO EM MÚLTIPLOS MERCADOS.”
ROGERIO MELFI,
HEAD DE COMUNIDADE DA ABFINTECHS
“TEMOS UM MERCADO MUITO INOVADOR, QUE FAVORECE A INTERNACIONALIZAÇÃO. MAS HÁ OUTROS FATORES, COMO A CAPACIDADE DO BRASILEIRO DE SE ADAPTAR A CULTURAS DIFERENTES, SEU EMPREENDEDORISMO E A HABILIDADE DE LIDAR COM AMBIENTES DE GRANDE VOLATILIDADE.
WILLER MARCONDES,
SÓCIO DA PWC BRASIL