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Deep techs à brasileira

A LUTA DE STARTUPS DE TECNOLOGIA PROFUNDA PARA CAPTAR INVESTIMENTOS, TRANSFORMAR A INDÚSTRIA BRASILEIRA E ENFRENTAR PROBLEMAS QUE ASSUSTAM O PAÍS E O MUNDO


LUIZ EDUARDO KOCHHANN
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por obile

Corria o ano de 2006 quando o cien­tista brasileiro Sérgio Mascare­nhas foi diagnosticado com Mal de Parkinson. Poucos meses depois, descobriu-se que, na verdade, ele sofria de hidrocefalia, um acúmu­lo de líquido no interior do crânio que gera sintomas parecidos ao das doenças neurológicas, como o Parkinson. Ao confrontar os mé­dicos, Mascarenhas observou que o diagnóstico errado decorria da dificuldade em medir a pressão no cérebro. A noção vigente afirmava que o crânio não se expandia e que, portanto, não havia sinais de oscila­ção do volume, o que também tor­nava recursos como a tomografia e o ultrassom insuficientes. Restava um método invasivo que envolvia a perfuração da cabeça. Inquieto com essas informações, Mascarenhas, falecido em maio de 2021, colocou as mãos à obra. E, em 2012, em par­ceria com o colega Gustavo Frigieri, publicou um artigo provando que o crânio se expande, sim – inclusive em pessoas saudáveis, conforme o fluxo sanguíneo oscila. Era como se os dois tivessem descoberto um novo sinal vital.

Durante as pesquisas, Masca­renhas e Frigieri procuraram o en­genheiro Rodrigo Andrade. Queriam auxílio para criar um método não invasivo para detectar o “pulso do crânio”. Em 2011, antes mesmo da publicação do artigo no qual anun­ciaram o achado, desenvolveram o primeiro sensor capaz de captar alterações do volume intracrania­no sem necessidade de perfuração. Trata-se de uma espécie de fita que circunda a cabeça do paciente, de­tectando variações desse novo si­nal vital. Assim, o dispositivo ajuda a identificar uma série de patolo­gias neurológicas, como traumas, acidentes vasculares cerebrais, tu­mores e, claro, hidrocefalias. O trio patenteou a tecnologia e abriu uma empresa com potencial para trans­formar áreas da medicina e impac­tar na saúde de milhões de pessoas ao redor do mundo. Dessa vez, era o pontapé inicial de uma das princi­pais deep techs brasileiras: a Brain­4care.

Deep techs são startups de tec­nologia profunda que, geralmente, nascem a partir de estudos realizados em universidades e centros de pesquisa – eventualmente, elas surgem em setores de P&D de grandes empresas. Suas soluções buscam resolver problemas complexos e de alto impacto na sociedade, como o tratamento de doenças, questões de mobilidade, desenvolvimento industrial e aquecimento global. Na América Latina, segundo o levantamento Deep Tech: The New Wave (Deep Tech: A Nova Onda, em tradução literal), realizado pelo Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), 61% das deep techs atuam na área de biotecnologia. Entre os setores emergentes no ecossistema da região, estão a inteligência artificial (11%), a nanotecnologia (6%), a energia limpa (5%), a exploração espacial (4%) e a mobilidade avançada (4%).
Transformar uma pesquisa científica num modelo de negócio escalável é o primeiro desafio das deep techs. “É um caminho longo e árduo”, pontua o professor Marcelo Caldeira Pedroso, da Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade da Universidade de São Paulo (USP). O risco está associado à composição do time de fundadores, que tradicionalmente são cientistas . Segundo o professor da USP, a falta de profissionais com uma mentalidade comercial apurada pode atrapalhar o desenvolvimento da empresa – especialmente, nas etapas de validação e comercialização da solução. “É importante ter ao lado do fundador uma equipe com competências complementares e alinhadas ao setor de atuação da deep tech para levar a tecnologia ao mercado”, completa Pedroso.

Não foi diferente no caso da Brain4care. Mascarenhas, Frigieri e Andrade eram todos cientistas. É aí que Plínio Targa, o atual CEO da Brain4care, entra em cena. Targa, um homem de fala entusiasmada, fundou uma consultoria que seria vendida para a gigante Ernst & Young em 2012. Ele e seu sócio, Carlos Bremer, andavam cansados do trabalho na multinacional. Certo dia, Bremer deu uma carona para Mascarenhas, em São Carlos, no interior de São Paulo, onde os dois viviam. Ainda no carro, o cientista vaticinou sem meias palavras: “Descobri um sinal vital que ninguém sabia que existia”. Mesmo com todas as dúvidas que permeavam a história, o motorista percebeu que se tratava de algo relevante e topou ajudar. Bremer e Targa usaram suas experiências para auxiliar no desenvolvimento da empresa e entraram como investidores-anjo.

“Como você faz um plano de negócios para criar uma organização que tem como objetivo legar para a humanidade a descoberta de um sinal vital? Foi assim que a gente começou”, lembra Targa. A dupla mergulhou de vez na jornada. Em 2017, foram selecionados, ao lado de sete empresas, pela Singularity University, para participar de um processo de aceleração. Voltaram dos Estados Unidos com um objetivo estratégico audacioso: tornar o novo sinal vital acessível a qualquer um, em qualquer lugar, em um prazo de 15 anos. Detalharam 17 grandes ações para os primeiros cinco anos, como proteção da patente e regulação do dispositivo. Mas o problema maior era o custo. “Íamos consumir US$ 15 milhões em cinco anos, sem gerar receita nenhuma, com um risco altíssimo de chegar no quinto ano e nada dar certo. Foi o primeiro momento em que nos olhamos e falamos: somos uma deep tech”, diz Targa.

O relatório European Deep Tech 2023 calcula que, em média, as deep techs levam 35% mais tempo e exigem 48% mais capital que as startups tradicionais para atingirem níveis de receita na casa dos US$ 5 milhões. Ou seja, elas também possuem um perfil de risco diferente, pois exigem mais dinheiro e um desenvolvimento mais longo – o que envolve, entre outros aspectos, a maturação da tecnologia e a regulação dos produtos criados – até entrarem no mercado. Obviamente, não é fácil achar investidores nesses casos. Segundo Pedroso, da USP, os venture capitals mais generalistas não costumam atuar em deep techs. Alguns fundos apostam no modelo de venture builders – quando trabalham junto ao empreendedor e o ajudam com novas captações – para se especializar no segmento. Mas os recursos ainda são escassos em relação à demanda.

UMA NOVA REALIDADE

A Financiadora de Estudos e Projetos (Finep) quer mudar esse quadro. Vinculada ao Ministério de Ciência, Tecnologia e Inovações (MCTI), a empresa lançou, recentemente, as diretrizes para a construção da Estratégia Nacional de Apoio a Startups Deep Techs e seus Ecossistemas no Brasil. O objetivo é coordenar ações de empresas e entidades do ecossistema de inovação, assim como financiadores, para desenvolver um ambiente mais propício às deep techs brasileiras. Entre as diretrizes, está um mapeamento dessas startups, a disponibilização de recursos adequados às suas necessidades e a simplificação de trâmites regulatórios e jurídicos.

O chefe de gabinete da Finep, Fernando Peregrino, enxerga um papel central para as deep techs em uma nova onda de industrialização no país. “Após uma queda da participação da indústria no PIB nas últimas décadas, o Brasil tem a expectativa de criar uma nova indústria com insumos tecnológicos em diversas áreas”, explica. “Devido às suas capacidades intelectuais e tecnológicas bastante disruptivas, as deep techs podem avançar nessa fronteira da inovação e do conhecimento no Brasil. É uma janela aberta”, projeta.

Em relação ao apoio financeiro, a estratégia sobre as deep techs enfatiza a necessidade de destinar recursos não reembolsáveis, de criar modelos mistos de financiamento (com recursos públicos, privados e filantrópicos) e de se utilizar compras governamentais e encomendas tecnológicas do poder público para impulsionar o mercado. Nesse processo, essas empresas seriam, naturalmente, incentivadas a encarar problemas caros ao Brasil e que não são prioridades em países desenvolvidos industrializados, como o combate às doenças tropicais. Além disso, segundo Peregrino, seria uma maneira de frear um antigo problema do campo científico nacional: a migração de talentos para outros centros.

O BID estima o ecossistema brasileiro de deep techs em US$ 1,9 bilhão. Segundo a pesquisa Deep Tech: The New Wave, quatro empresas nacionais são avaliadas entre US$ 100 milhões e US$ 500 milhões. Entre elas, está a Biotimize. Fundada por três jovens engenheiros em 2016, a startup começou como uma consultoria no setor de biotecnologia – o mais efervescente entre as deep techs por aqui, representando 57% do total. Em agosto de 2022, a Biotimize abriu uma rodada global de investimentos para captar US$ 30 milhões. “Não tem investidores maduros o suficiente no Brasil para as deep techs de biotecnologia. Ainda mais com um cheque alto como o nosso. Por isso, inicialmente, o foco foi buscar investimento fora”, afirma Fernando César Barbosa, cofundador e CEO da Biotimize. Os recursos visam a construção da primeira indústria com certificação de boas práticas para a produção completa – passando das fases pré-clínicas até os lotes comerciais – de fármacos de origem sintética em solo brasileiro. Em um golpe de sorte, o grupo Sthorm, baseado em Piracicaba, no interior paulista, assumiu a frente de investimentos do projeto. “Se conseguíssemos uma captação de fora do Brasil, estaríamos lidando com um conceito de retorno e lucro ‘as soon as possible’, que é o que um venture capital tradicional busca”, pondera Barbosa.

A fábrica da Biotimize, que vai estar em pleno funcionamento em 2027, funciona como um CDMO (Contract Development and Manufacturing Organization, na sigla em inglês). Nesse modelo de “biotecnologia como serviço”, universidades, institutos de pesquisa, startups e demais empresas do setor contratam a estrutura para o desenvolvimento e fabricação de uma classe de medicamentos majoritariamente oriunda do hemisfério norte. O Brasil importa mais de 90% desses remédios, o que causa um déficit anual de US$ 20 bilhões ao Ministério da Saúde, segundo Barbosa. “Quem desenvolve essas moléculas são empresas que não estão focadas em doenças que acometem o Brasil, como dengue e Zika. Criamos a possibilidade dessas tecnologias se tornarem realidade aqui. Além de gerar inovação para o ecossistema local, isso pode diminuir o custo do SUS e garantir um estoque para atender o Brasil em momentos de crise, como uma pandemia”, afirma.

Enquanto isso, a Brain4care conta com 80 clientes no Brasil, entre hospitais e clínicas. A projeção de Targa, o CEO, é atingir a marca de 800 clientes nacionais em três anos. Para chegar lá, a deep tech aposta em um modelo de Software as a Service (SaaS). Além do sensor intracraniano não invasivo, a empresa desenvolveu um aplicativo que capta os sinais do aparelho e os processa na nuvem, gerando indicadores úteis para a leitura dos profissionais da saúde. Ou seja, em vez de vender o dispositivo, optou-se por entregar o aparelho e cobrar uma mensalidade pelo serviço. Nesse momento, a Brain4care roda um fundo para captar US$ 10 milhões, destinados a alavancar os negócios nos Estados Unidos. A tecnologia está aprovada pela FDA (Food and Drug Administration, o equivalente à Anvisa nos EUA) e tem patente registrada em 33 países. “Se não tiver investimento nacional, as pessoas levam seus negócios para fora. Estamos buscando mercados, mas lutando para manter nossa empresa aqui, para que ela seja uma empresa global brasileira”, afirma Targa. //


“Como você faz um plano de negócios para criar uma organização que tem como objetivo legar para a humanidade a descoberta de um sinal vital? Foi assim que a gente começou. Íamos consumir US$ 15 milhões em cinco anos, sem gerar receita nenhuma, com um risco altíssimo de chegar no quinto ano e nada dar certo. Foi o primeiro momento em que nos olhamos e falamos: somos uma deep tech.”

PLÍNIO TARGA, CEO DA BRAIN4CARE

“Não tem investidores maduros o suficiente no Brasil para as deep techs de biotecnologia. Ainda mais com um cheque alto como o nosso. Por isso, inicialmente, o foco foi buscar investimento fora.”

FERNANDO CÉSAR BARBOSA, CEO DA BIOTIMIZE

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