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Silvio Meira, o solucionador de problemas

A trajetória de Silvio Meira, personagem central da história da inovação no Brasil nos últimos 40 anos


Por Paulo César Teixeira
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por bem2030
silvio meira

Não é força de expressão ou figura de linguagem. Cientista, professor, pensador e empreendedor, o paraibano Silvio Meira, de 66 anos, escreveu seu mais recente livro, O que é estratégia? (Paradoxum, 2021), à frente de uma dezena de monitores de computador, em sua casa, no Recife (PE). É verdade que não demorou mais do que 15 dias para completar a tarefa. Neste tempo, também deu atenção a outros inúmeros afazeres. Entre eles, a preparação de aulas e palestras e a participação em reuniões de conselhos de administração – tanto do Porto Digital, um dos principais parques tecnológicos do Brasil, do qual é presidente, como de uma das cinco empresas das quais participa. Sobrava espaço, ainda, para ao menos uma ou duas postagens diárias no Twitter. “Sempre fui assim, é um dos meus problemas. Mas sei exatamente quanto tempo invisto em cada atividade. Segmento os horários e coloco na agenda. É uma dispersão ao mesmo tempo caótica e organizada”, explica. 

A aplicação calculada do tempo não é novidade. O primeiro livro que leu no doutorado em Ciência da Computação, na Universidade de Kent, na Inglaterra, na década de 1980, por sugestão do orientador David Turner, foi Tractatus Logico-Philosophicus, do filósofo austríaco Ludwig Wittgenstein. “Quando ele retirou da estante, fiquei feliz ao ver que era fininho. Pensei: ‘Ok, dá para ler em três dias, não em três meses’.” Três dias que ficaram marcados por 40 anos, tanto que a obra de Wittgenstein serviu de fonte de inspiração para O que é estratégia?. “Tractatus é um texto seco, áspero, simultaneamente complexo e sofisticado, além de fundamental para a minha formação. Hoje, posso dizer que sou um engenheiro que leu Wittgenstein”. 

Essa é apenas uma das tantas autodefinições de Silvio Meira. Outra é “resolvedor de problemas”, o que já se antevia na infância, época em que desmontava os eletrodomésticos estragados da casa. “Quebrou, era comigo mesmo. Desmontava todinho. Eventualmente, mas nem sempre, descobria o que estava quebrado e isso me satisfazia. Dizia para a minha mãe [a professora Zuila, responsável pela alfabetização do filho]: ‘Pronto, agora pode trazer alguém para consertar, porque eu não vou fazer, não’.” Em outras palavras, o processo de elucidação dos desafios importa mais do que a solução que encontra para eles. “Eu sou um curioso que anda atrás de novos problemas para resolver. Isso é quase a mola mestra da minha vida, é a minha razão de existir.” 

Não é diferente a forma como se comporta nos conselhos de cinco grandes empresas privadas – CI&T (soluções digitais), Magalu (varejo), MRV (construção civil), Balcão Brasileiro de Comercialização de Energia (mercado livre de energia) e Tempest (cibersegurança). “Trato como assunto cognitivo. Meu papel é contribuir olhando o mercado de cada uma das companhias a partir do futuro. Competentes como são, elas saberão o que fazer a partir disso”, analisa. Meira também tem a sua própria empresa, a The Digital Strategy Company (TDS), com mais de 100 colaboradores, onde exerce a função de cientista-chefe. O objetivo da TDS é oferecer plataformas, metodologias e processos para ajudar outras organizações a realizarem a transformação estratégica. Como curiosidade, o endereço digital da TDS é o próprio nome da organização – para isso, utiliza uma extensão ponto company disponível na web. 

Mas há exceções nas quais Silvio Meira transcende o nível abstrato e arregaça as mangas para colocar a mão na massa. Ao retornar da Inglaterra, em 1985, entrou de cabeça no redesenho e refundação do que é hoje o Centro de Informática da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), junto com Paulo Cunha e Clylton Fernandes. Na época, Meira tomou conhecimento de que era o 49º doutor brasileiro em computação e que a UFPE contava com quatro representantes na lista – o que dava uma dimensão do atraso brasileiro nas veredas da ciência e da tecnologia. Desenvolveu, então, um plano para inserir Recife no mapa da inovação do país no prazo de 15 anos, quando a quantidade de doutores formados pela universidade deveria pular para 20. 

O projeto do Centro de Informática da UFPE foi redigido na máquina de escrever Olivetti Lettera 22 de seu pai. Desde então, a instituição formou mais de 2,1 mil mestres (sendo a primeira no Brasil a ultrapassar a marca de 2 mil) e cerca de 500 doutores. Em 1996, ao perceber que 60% dos acadêmicos ali formados iam embora de Pernambuco por falta de espaço na economia local, ele ajudou a fundar o Centro de Estudos e Sistemas Avançados do Recife (CESAR), instituto de inovação sem fins lucrativos e autossustentável, que assumiu a responsabilidade de criar uma ponte entre a pesquisa acadêmica e o mercado.  

Silvio Meira na infância. Crédito: Arquivo Pessoal/Divulgação.

Não satisfeito ainda, em 2000, Silvio Meira ajudou a fundar o Porto Digital, que é hoje o principal parque de inovação do Brasil, com faturamento anual em torno de R$ 2,5 bilhões. Como foi implantado numa área deteriorada, antes ocupada pela “cracolândia” local, o empreendimento proporcionou a recuperação não apenas de prédios históricos, mas do próprio ambiente do Centro Histórico do Recife. Nos três casos citados, que estão interligados, o resolvedor de problemas abandonou o plano das ideias abstratas para achar soluções que envolviam temas complexos de política, ciência, tecnologia, inovação e patrimônio histórico. “Se eu consigo ver a solução do problema, ele deixa de me interessar rapidamente. Mas, se é um problema complicado, que me obriga a trabalhar durante anos nele, aí eu me engajo”, esclarece. 

Galo visionário 

Há outra definição de si próprio que Meira costuma usar: a de um “realista esperançoso”. Essa tomou emprestada do dramaturgo e romancista Ariano Suassuna, com o qual guarda muitas afinidades. Para começar, ambos são de Taperoá, município do sertão paraibano. Só que não. Na verdade, Ariano nasceu a cerca de 240 km dali, mais precisamente no Palácio da Redenção, em João Pessoa, em 1927, quando o pai exercia o cargo de presidente da Paraíba – equivalente a governador. Contudo, após o assassinato do patriarca, em meio à revolução de 1930, a família Suassuna se transferiu para Taperoá, onde o dramaturgo morou de 1933 a 1937. 

Igualmente, “do ponto de vista filosófico”, Silvio Meira nasceu em Taperoá, embora tenha vindo ao mundo em 2 de fevereiro de 1955 em Campina Grande. Explica-se: Inácio, seu pai, não confiando na maternidade local, preferiu dirigir um Jeep da 2ª Guerra para que o parto fosse realizado na cidade vizinha. Foi o tempo de nascer e voltar para Taperoá, até hoje uma espécie de âncora das memórias e da imaginação do pensador dedicado à inovação. Quando desenha futuros, muitos deles são frutos de devaneios da infância.  

Uma das recordações mais remotas é de junho de 1958 – ele tem o registro da data devido à súbita sensação de frio que se abate sobre as regiões mais elevadas do Nordeste no começo do inverno. Aos três anos de idade, ele recebeu a visita da avó, dona Amara, que veio ajudar a cuidar do irmão mais novo. “Esse menino vai ser engenheiro”, previu ela. O presságio tinha sua razão de ser. A criança gostava de juntar pedras para construir muretas, mexer com rodinhas e cavar buracos para encher de água. Naquele dia, em particular, o menino curioso arremessou uma pedra para cima e ela caiu de volta sobre o lado esquerdo da fronte. Como resultado, até hoje, um lado da testa é mais alto do que o outro. Não foi a principal consequência do acidente doméstico – daí em diante, o prognóstico da avó estava fadado a se confirmar.  

Mesmo após deixar a cidade, no começo da adolescência, ele jamais rompeu os laços com a origem sertaneja, até porque a família sempre retornava durante as férias e nas festas de fim de ano. “Taperoá é um pedaço de terra que me ancora no sertão. Sou um homem do interior, que sente falta do cheiro dos biscoitos de araruta de minha avó, das comidas de milho, do feijão verde, da carne de sol, e também das arruaças e das festas de São João.” Apesar disso, a ligação com o Recife vem se acentuando com o passar do tempo. Quando estudava Engenharia Eletrônica no Instituto Tecnológico da Aeronáutica (ITA), em São José do Campos (SP), chegou a arrumar emprego no Banco Itaú, mas pediu demissão após encarar um congestionamento de quatro horas na estrada para São Paulo. Formado no ITA em 1977, até recebeu convites para trabalhar em multinacionais, mas optou pelo mestrado em Computação na UFPE. Hoje, diz que escolheu não apenas viver, mas “morrer no Recife”, o que constitui uma decisão bastante estratégica: “Quando a pessoa opta por morrer em um lugar, ninguém consegue tirá-la de lá.” No caso dele, sente como se tivesse abraçado a missão de criar motivos pelos quais a capital pernambucana possa se orgulhar durante décadas.  

A magnitude dos objetivos, muitas vezes, se expressa em pequenos detalhes. Quando fundou o Centro de Informática da UFPE, a pretensão era a de que fosse um dos centros de referência em ciência da computação no país. Para isso, uma das condições prévias era a de ter sanitários impecáveis. “O Paulo tinha estudado no Canadá, já eu e Clylton na Inglaterra. Não entendíamos como era possível trabalhar em banheiros no estado em que se encontravam os da universidade”, rememora. Em 1997, a revista Veja publicou reportagem de duas páginas e meia apontando o centro de informática pernambucano como exemplo a ser seguido pelas demais instituições de ensino superior. Durante a entrevista, o repórter havia pedido licença para ir à toalete e, ao voltar, se disse impressionado. “Pois é, faz parte do plano. A ideia é que, se cair a lente de contato no chão, não será preciso jogar fora, bastará lavar”, respondeu Meira ao jornalista. Não por acaso, o texto da matéria começava com a descrição dos banheiros. 

Evidentemente, a excelência do Centro de Informática da UFPE transcende as questões sanitárias. O parque disponibilizava “a melhor internet do Nordeste” em meados dos anos 1990. Como, à época, quase ninguém tinha conectividade em casa, os alunos se deslocavam até a universidade para navegar na web mesmo aos domingos, a exemplo do próprio Meira, que se dirigia até o local após almoçar com a família – ele é casado e tem três filhos. Outra providência foi disponibilizar impressoras a laser nos corredores do prédio. “O que há de mais relevante em um centro de pesquisa são os alunos. É preciso atraí-los e dar condições para que fiquem lá dentro o tempo todo.” 

O triunfo do acrônimo  

Tão marcante quanto a vocação de pesquisador ou gestor, o talento para professor ficou evidente quando Meira descobriu, aos 16 anos, que melhorava a própria compreensão de um problema ao tentar explicá-lo aos colegas de cursinho pré-vestibular. Talvez porque, sem o desafio de elucidar o tema para outra pessoa, era como se não o tivesse compreendido. “Não sou palestrante, como as pessoas acreditam – sou um professor que dá palestra, o que é muito diferente.” Aposentado da UFPE em 2014, passou pela Escola de Direito da FGV/RJ e atualmente ainda dá aulas na CESAR School, braço educacional do centro de inovação. 

Ao longo da trajetória acadêmica, aprendeu a atribuir relevância às siglas e abreviaturas, o que compensa a falta de memória. É capaz de recordar o nome de um colega do mestrado (que completou em 1981), mas tem dificuldade de identificar os atuais alunos. Para isso, recorre às iniciais – JHCF, por exemplo, refere-se a Jorge Henrique Cabral Fernandes, “um menino fantástico do Rio Grande do Norte”, que se tornou mestre junto com ele há 40 anos. O hábito remete à infância, quando descobriu o significado da abreviatura Sanbra, de Sociedade Algodoeira do Nordeste Brasileiro, empresa do grupo Bunge, onde o pai trabalhava.  

Por sinal, a escolha do acrônimo CESAR veio antes da definição do nome por extenso. Reunidos em volta de uma mesa, em meio a algumas garrafas de uísque, os fundadores se dispuseram a achar uma sigla alinhada às metas ambiciosas que haviam delineado. “O nome que me veio à cabeça e tinha a ver com essa grandiosidade foi o de Cesar, imperador da Roma Antiga. Poderia ser Alexandre, outro conquistador, mas esse era extenso demais”, explica. Batido o martelo, partiu-se para a tarefa seguinte: descobrir uma denominação que se encaixasse na abreviatura. Chegaram a Centro de Estudos de Sistemas Avançados, mas faltava o “R” final. Depois da última dose, apareceu “do Recife”. “Grande parte das pessoas até hoje não sabe o que está escrito por trás da sigla”, admite Meira. Pouco importa. O acrônimo contém toda a eloquência dos objetivos plenamente alcançados pelo centro irradiador de inovação. 

Um folião de Maracatu

Silvio Meira. Crédito: Arquivo Pessoal/Divulgação.

Aos 15 anos de idade, Silvio Meira viveu em Arcoverde, no interior pernambucano. Na época, aprendeu a tocar saxofone na escola de música da OARA – sigla de Orquestra Arcoverdense de Ritmos Americanos. “De Arcoverde até Monteiro, já na Paraíba, passando por Serra Talhada [onde nasceu o grande saxofonista Moacir Santos], aquela era uma região extremamente musical, onde aconteciam bailes memoráveis”, afirma.  

A carreira de saxofonista foi precocemente interrompida por imposição do pai, que não via futuro para o filho com a música, talvez por experiência própria – na juventude, Inácio havia sido clarinetista da banda de Itaperoá. “Como fiquei sem ter o que fazer, resolvi estudar”, conforma-se Meira. Mas a experiência em Arcoverde serviu como “revelação, um acordar” para a magia do frevo, que o arrepia até hoje. Tanto que, sem a opção do instrumento de sopro, virou percussionista de carnaval. 

Em maio de 1985, ao retornar da Inglaterra, Meira se reconectou de vez com as algazarras de Momo. Até hoje não sabe como sobreviveu ao carnaval de 1986, o mais fantástico de sua vida, quando atravessou dez dias na folia sem praticamente esmorecer um minuto. Compôs hinos e contribuiu para a fundação de alguns blocos de maracatu, como o Cabra Alada, que completou 25 anos em 2020. A expectativa é a de que, em 2022, com o controle da pandemia, o carnaval possa voltar “com gosto de gás”, como prega a gíria pernambucana ao se referir a tudo que tem muita intensidade. 

Um livro-código que faz pensar

Ao escrever O que é estratégia?, lançado em versão impressa e na plataforma digital Kindle (da Amazon), Silvio Meira fez questão de abordar o tema-central do livro de forma atemporal. “O interesse são as grandes estratégias, e não os problemas menores do que se convencionou denominar planejamento estratégico. Estratégias tratam de sistemas e se aplicam a sistemas, uma gama de instituições que vai do universo a negócios e pessoas.” 

Uma curiosidade é que Silvio Meira não usa maiúsculas na abertura das frases. Faz parte do estilo provocativo que inventou no começo dos anos 2000, quando escrevia um blog para o Terra Magazine. “Percebi que os comentários eram feitos sem que as pessoas tivessem lido o texto. Liam só o título”, explica. O estratagema é uma maneira de capturar a atenção do leitor, inserindo um elemento estranho no texto, de modo a obrigá-lo a reler com mais atenção. Foi inspirado em atributos da Bauhaus – escola de arte vanguardista criada no início do século passado, na Alemanha – e na inversão da norma adotada nos escritos romanos clássicos, que não utilizavam minúsculas. 

O impulso de tomar como inspiração o Tractatus Logico-Philosophicus apareceu ao saber do centenário da divulgação da única obra publicada em vida por Ludwig Wittgenstein. É um conjunto de aforismos e corolários, que busca explorar os limites da lógica e da linguagem como representação da realidade. As pretensões audaciosas de Wittgenstein foram desmontadas pelos matemáticos Kurt Gödel e Alan Turing, mas, segundo Meira, o filósofo sabia o que estava fazendo: “Ele criou uma espécie de programa mental para o cérebro. Depois de ler aquilo, a pessoa começa a pensar de um modo diferente.” 

O que é estratégia? é um “livro-código para ser lido muitas vezes, até porque está escrito em loop – quando você chega no último tópico, é preciso voltar ao começo”. Além disso, por meio de um QR Code, o leitor é conduzido a um chat, onde poderá debater o conteúdo com outros apreciadores da obra. “É um trabalho totalmente abstrato, mas extremamente pragmático – se não trouxer soluções para aplicar na prática, não terá servido para nada”, conclui Meira. 

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