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Internet dos Corpos: você foi atualizado

Depois da Internet das Coisas, é a vez de a Internet dos Corpos conectar nosso organismo a máquinas superinteligentes. Resta saber se essa revolução vai gerar uma nova espécie humana, um apocalipse cibernético ou apenas uma medicina mais eficaz


Andreas Müller
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por bem2030

A Internet das Coisas deixou de ser uma tendência. Todos os dias, zilhões de dados são coletados a partir da conexão entre as mais diversas “coisas”. Chips rastreiam o paradeiro das nossas encomendas online. Câmeras inteligentes monitoram o movimento em aeroportos, supermercados e até mesmo nas ruas. Durante a pandemia da Covid-19, a localização de telefones celulares foi utilizada para controlar o distanciamento social em grandes cidades. Nada disso é novidade, portanto. Mas o que acontece quando as pessoas começam a conectar seus próprios corpos, e quem sabe até seus pensamentos, nessa enorme rede de “coisas”?  A resposta é o que milhares de médicos, cientistas da informação, empreendedores e futurólogos ao redor do mundo vêm chamando de Internet dos Corpos – em inglês, Internet of Bodies ou simplesmente IoB.

A Internet dos Corpos é uma evolução da Internet das Coisas, tornada possível graças a sensores ultramodernos que coletam e monitoram dados sobre o corpo e a mente humanos. Algumas aplicações já são de uso corriqueiro. Só em 2019, por exemplo, mais de 69 milhões de smartwatches, ou relógios inteligentes, foram vendidos mundo afora, conforme a consultoria de pesquisas Statista. Quase metade deles foram os modelos da Apple, que vêm de fábrica com monitor cardíaco, contador de passos e até mesmo sensores de qualidade de sono. Além de ajudar o usuário a cuidar da saúde, os dados são processados de forma anônima na nuvem, onde se somam a um imenso banco de informações sobre como funciona o corpo humano.

Os wearables representam apenas a primeira geração da Internet dos Corpos, aquela conhecida pelos cientistas como “corpo externo”. A segunda geração é a do “corpo interno”, com mecanismos que podem ser implantados ou ingeridos para coletar e transmitir dados do organismo em tempo real. Os exemplos mais conhecidos são os marca-passos inteligentes. Equipados com Wi-Fi, eles notificam o médico quando há alguma anomalia no ritmo cardíaco do paciente. Como o alerta é instantâneo, as chances de intervenção e sobrevivência aumentam exponencialmente.

Mas já existem aplicações mais arrojadas, tais como o “pâncreas artificial” – uma maquininha que monitora os níveis de glicose e libera automaticamente as doses de insulina para diabéticos; e também pílulas inteligentes que informam o status de determinados tipos de câncer enquanto passam pelo estômago do paciente. Há, ainda, a terceira geração da Internet dos Corpos: a do corpo conectado. Aqui estão as tecnologias mais disruptivas, que prometem interligar pessoas e máquinas e abrir espaço para o surgimento de uma nova espécie humana – aquilo que o historiador israelense Yuval Noah Harari chamou de Homo Deus. Nessa etapa, algoritmos terão condições de antecipar o diagnóstico de doenças e interferir no funcionamento do organismo e do próprio cérebro, expandindo suas capacidades a um patamar inimaginável.

Chips e cérebros trabalham com uma linguagem comum, que é a dos impulsos elétricos. Então, por que não imaginar que é possível conectá-los para ampliar as capacidades humanas?”

Tiago Mattos
———- futurista e cofundador da Perestroika e da Aerolito ———-

À frente dessa onda está, bem, ele mesmo: o megaempresário, visionário e guru da nova economia Elon Musk. Além de revolucionar o mercado automobilístico com os carros elétricos da Tesla e de liderar a corrida espacial com os foguetes da SpaceX, Musk vem desenvolvendo uma linha disruptiva de chips capazes de se conectar aos neurônios humanos – por meio de uma empresa chamada Neuralink. Oficialmente, o projeto foi apresentado em julho de 2019, durante uma conferência científica na Califórnia. Mas sua gestação remonta a 2016, quando o bilionário sul-africano anunciou ao mundo a intenção de investir em pesquisas médicas focadas na interação cérebro-máquina.

De lá para cá, não foram poucos os avanços da Neuralink. Chamado N1, o primeiro “neurochip” de Musk traz 1.024 eletrodos dispostos em um silício de apenas 4mm por 4mm. Menor do que um botão de camisa, o neurochip pode ser implantado no crânio sem a necessidade de anestesia geral. A operação leva uma hora e é feita por um robô através de uma incisão milimétrica. O dispositivo ainda aguarda a liberação da Food and Drug Administration (FDA), órgão responsável por regulamentar alimentos e medicamentos nos Estados Unidos. Mas a expectativa é de que ele possa ser implantado sem a necessidade de internação: o paciente receberá o dispositivo pela manhã e, à tarde, poderá estar em casa. A bateria dura um dia e pode ser carregada à noite, por indução, tal como funcionam os atuais carregadores sem fios dos telefones celulares.

Em busca do neo-neocortex

Qual é a vantagem de se ter um neurochip acoplado ao próprio crânio? A intenção primordial de Musk é restaurar as funções motoras e sensoriais comprometidas por lesões ou doenças como o Mal de Parkinson. Uma vez conectado, o dispositivo pode ser usado para o paciente se comunicar através de telas e sintetizadores de fala. Ou, ainda, para controlar robôs em tarefas simples como abrir uma torneira ou acender a luz de uma sala. A longo prazo, porém, o potencial de aplicação é ilimitado. À medida que se tornar mais rápido e preciso, o neurochip poderá ser usado para, literalmente, transmitir pensamentos. É aí que a conversa ganha contornos de ficção científica: para alguns estudiosos, chegará o momento em que poderemos conectar nossos cérebros à internet, selando uma fusão entre a inteligência humana e a inteligência artificial. Em suma, uma nova espécie humana.

O futurista Tiago Mattos está entre os que apostam nessa (r)evolução. Segundo ele, que é professor na Singularity University, o cérebro humano se divide naturalmente em três camadas sobrepostas, como numa cebola. O miolo é o cérebro protorreptiliano e responde por nossas funções e instintos mais básicos. Em volta dele, na segunda camada, está o sistema límbico, que administra emoções e comportamentos sociais. Já a terceira camada, mais externa, é o chamado neocortex. É ali que se concentram as funções racionais, como a fala e a capacidade de organização. Aliás, foi o desenvolvimento do neocortex que determinou a supremacia do Homo Sapiens sobre as demais espécies.

“Eu imagino que os neurochips se tornarão a quarta camada neural da nossa espécie, o nosso neo-neocortex. Se conseguirmos conectá-lo à internet, então seremos capazes de fazer coisas que nem compreendemos ainda”, entusiasma-se Mattos. De certa forma, cada pessoa estará conectada a um grande mainframe formado pela soma de todas as inteligências humanas e artificiais. Imagine, por exemplo, que você tem o talento de nomear as capitais de todos os países do mundo: no futuro, talvez seja impossível dizer se essa informação está armazenada nos seus neurônios ou se, na verdade, está sendo acessada através desse grande Google mental.

Mattos vai além: para ele, os seres humanos terão condições de usar as conexões cerebrais para compartilhar pensamentos, sentimentos e outras informações – mais ou menos como se enviassem mensagens pelo WhatsApp. “Talvez eu consiga, por exemplo, sentir a dor de alguém que está em luto. Ou, então, poderei entender o amor que uma mãe tem por seu filho. Estamos falando de uma nova dimensão de interações neurais”, aponta o futurista. Recentemente, ele tomou a iniciativa de implantar no próprio braço um microchip com seus dados genéticos.

E os riscos da Internet dos Corpos?

Diante de tantas transformações, não é preciso ter neurochips para adivinhar o que você está pensando neste momento. Mas vale adiantar: como todas as tecnologias disruptivas, a Internet dos Corpos tem, sim, um alto potencial destrutivo – e nós nem sequer estamos preparados para dimensioná-lo, por enquanto. Nossos cérebros ficarão expostos a hackers? É seguro compartilhar informações dos nossos corpos e mentes com sistemas de inteligência artificial? Isso sem contar os “termos de uso”: se já nos sentimos manipulados nas redes sociais, onde tudo que compartilhamos são fotos da família e um punhado de likes e comentários, o que acontecerá quando começarmos a “postar” dados biológicos e até mesmo pensamentos no enorme mainframe da inteligência humana?

Para começar, é preciso esclarecer que ainda estamos distantes do ponto em que as máquinas poderão rivalizar com o cérebro. Quem afirma é ninguém menos do que Miguel Nicolelis, um dos mais respeitados neurocientistas do planeta – e um dos primeiros a comprovar a possibilidade de uma “internet cerebral”, ou brain net. “O cérebro não é computável. Não é redutível a um algoritmo. Os atributos mais importantes da mente são a capacidade de intuir, de criar, de reduzir espaços multidimensionais para uma hipótese em três dimensões. […] É impossível replicar essas habilidades em algoritmo. É um problema matemático”, argumenta ele, em entrevista recente ao portal The Shift, especializado em inovação.

Além disso, é pouco provável que haja informações tão valiosas escondidas no âmago dos nossos pensamentos. O verdadeiro propósito da Internet dos Corpos é melhorar a saúde humana, abrindo caminhos para diagnósticos e tratamentos mais eficazes. Em algum lugar, alguém que você não conhece terá uma tabela com todo o seu histórico de horas de sono, ritmo cardíaco, glicemia e até o número de passos que você deu nos últimos anos. Em compensação, é muito provável que você tenha acesso facilitado a tratamentos para a insônia, cardiopatias em geral, diabetes e outras doenças que, hoje, ainda carecem de cura definitiva. “Nesse contexto, compartilhar os dados do meu organismo com um sistema de inteligência artificial me parece uma troca bastante justa”, explica o neurologista Pedro Schestatsky, responsável por projetos como o LifeLab, que utiliza inteligência artificial para analisar exames e detectar doenças em fases iniciais.

Os dados como legado

Segundo Schestatsky, o grande legado da Internet dos Corpos é a capacidade de coletar uma vastidão de dados sobre o corpo humano em um espaço de tempo relativamente mais curto. Exemplo disso são as pesquisas sobre padrões de sono: pelo método científico tradicional, um estudo de grande porte seria baseado em um universo de 300 mil horas de sono coletadas ao longo de anos. “Pelos wearables, no entanto, já temos condições de identificar padrões de comportamento neurológico em amostras com mais de 28 milhões de horas de sono”, compara. Com tantos dados, os algoritmos conseguem mapear com mais precisão os padrões de determinadas patologias – inclusive antes de elas se manifestarem. Consequentemente, os médicos se tornam capazes de abordar o problema de forma preditiva, e não apenas reativa.

Até o momento, não se tem notícias de que essas montanhas de dados tenham sido usadas para prejudicar ou manipular alguém. Até porque o comportamento humano não é uma ciência exata – e nem sempre pode ser rastreado a partir de algoritmos. Segundo Schestatsky, vários estudos já foram realizados para identificar os padrões de comportamento que antecedem um suicídio, por exemplo. “Já sabemos que o suicida em potencial tende a visitar determinados sites e adotar algumas ações. Mesmo assim, quando nos baseamos nesses padrões, o número de ‘falsos positivos’ que identificamos ainda é altíssimo”, aponta. O mesmo problema acontece com os sistemas que monitoram a saúde em tempo real: no decorrer do dia, uma pessoa estressada pode apresentar sintomas associados a diferentes patologias – o que pode levar os algoritmos a conclusões equivocadas. “Ao longo do dia, o organismo oscila muito. Qualquer pessoa pode ficar doente e saudável em um intervalo de horas”, aponta Schestatsky.

Alguém, em algum lugar, vai ter acesso irrestrito a todos os dados do seu corpo, desde seus níveis glicêmicos até a qualidade do seu sono. Em compensação, você terá acesso a tratamentos muito mais eficazes para problemas como diabetes e insônia. Não parece uma troca justa?”

Pedro Schestatsky
———- neurologista e empreendedor de novas tecnologias em medicina ———-

De qualquer forma, o saldo tem sido positivo. Em janeiro de 2020, quando ainda estava no epicentro da pandemia de Covid-19, a China começou a testar uma solução de IoB para reduzir os índices de infecção entre médicos e enfermeiros da linha de frente. Em sete hospitais do país, incluindo-se o respeitado Centro Clínico de Saúde Pública de Shangai, os pacientes foram conectados a dispositivos que mediam a temperatura do corpo em tempo real. Os dados eram transmitidos para uma central que analisava a evolução de cada caso e identificava eventuais anomalias. Assim, os enfermeiros podiam monitorar os pacientes a distância, com menor número de visitas presenciais – logo, com risco reduzido de contrair o vírus.

Curadoria de curas

No longo prazo, a expectativa é que a IoB desencadeie o que o cardiologista norte-americano Eric Topol classifica como “a destruição criativa na Medicina”. Autor de dois livros sobre o tema, ele entende que a profusão de dados obtidos pela revolução digital vai transformar a maneira como cuidamos da própria saúde. De um lado, os pacientes terão acesso a análises e alertas cada vez mais precisos sobre seu histórico de saúde, sem que precisem ir ao médico ao primeiro sintoma. De outro, os médicos deixarão de ser os únicos portadores de informação sobre as doenças. No dia a dia, eles atuarão como “curadores”, orientando os pacientes para que saibam interpretar e utilizar corretamente as informações obtidas pelos dispositivos da Internet dos Corpos.

Não se trata de consagrar a “Medicina através do Google”, como temem os mais conservadores. Para Topol, o que está em jogo é a viabilidade dos sistemas públicos de saúde – que não têm mais condições de funcionar na base de consultas presenciais com os médicos. “Estamos embarcando em uma era em que cada pessoa terá todo seu histórico de dados médicos à mão, bem como computadores capazes de analisá-lo com precisão”, diz Topol no livro The Patient Will See You Now – The Future of Medicine Is in Your Hands (não publicado em português). Para ele, isso vai alterar de vez as relações de poder nos consultórios. “Os médicos deixarão de ser vistos como divindades e os pacientes serão empoderados, apropriando-se mais do resultado de seus próprios tratamentos”, alega Topol. Nesse contexto, o futuro imediato desenhado pela IoB só parece distópico aos olhos daqueles que teimam em resistir às grandes transformações da humanidade.

Publicado na 2ª edição da Revista 20/30. Baixe a versão digital aqui.

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