Se o seu sonho é ter um escritório no Vale do Silício, saiba que este pode ser um bom momento para realizá-lo. Em setembro de 2020, por exemplo, o custo dos aluguéis comerciais ao sul de San Francisco estava 30% inferior ao mesmo período do ano anterior. É uma das maiores quedas da história na região. A locação dos apartamentos também despencou – 23%, em média. Esse barateamento tem a ver com uma migração que ocorre na meca da inovação mundial: o surgimento das empresas híbridas.
A debandada é reflexo de mudanças estratégicas das Big Techs. Elas começaram a alterar o perfil de suas estruturas físicas. O Dropbox projeta substituir grandes escritórios por espaços menores, mais ágeis e focados em trabalho colaborativo. Já o Facebook quer impulsionar as suas contratações remotas. O conglomerado de mídia social pretende ter 50% de sua força de trabalho atuando em teletrabalho até 2030. Nos EUA, o Facebook irá descentralizar suas atuações e ampliar o número de empregados nas regiões em que possui escritórios.
Serão construídos diversos hubs nesses locais — uma rede de coworkings pensada para garantir a interação presencial entre as equipes. No restante do tempo, o trabalho acontecerá de casa. Ou de onde o colaborador quiser. A Alphabet, holding controladora do Google, adotou a mesma pegada. Apenas 5% dos funcionários estão concentrados no campus da empresa. Os outros 95% atuam por meio de plataformas virtuais. Será assim até a metade de 2021, no mínimo. No Twitter, o prazo é ainda maior. Aliás, não há data de retorno. Em maio, o CEO Jack Dorsey anunciou que os seus 9 mil funcionários poderão trabalhar onde bem entenderem. Para sempre.
O empurrão da pandemia
A pandemia foi o estopim para os titãs do setor de tecnologia adotarem a pulverização da sua força de trabalho. No entanto, o distanciamento social apenas acelerou uma transformação gestada havia bastante tempo no alto escalão dessas companhias. A maior parte delas já estudava maneiras de dar um passo além no processo de digitalização, virtualizando suas estruturas sem tirar um dos pés da terra firme. Agora, elas começam a se converter em empresas híbridas.
Corporações assim não enxergam o home office e o teletrabalho como um mero benefício aos profissionais ou um bunker em tempos de tempestade. Ambos tornam-se parte de uma rotina que privilegia a produtividade e a agilidade do online, mas não prescinde dos ambientes presenciais para reforçar os laços humanos. O equilíbrio entre os dois elementos pautará a atuação de inúmeros setores do mercado daqui em diante. E esse parece ser um processo sem volta.
No Brasil, uma disrupção dessa magnitude pode assustar gestores que, até o Carnaval passado, torciam o nariz quando ouviam falar de home office. Entretanto, eles viram seus negócios serem catapultados para a web em um par de semanas. Aos poucos, porém, muitos começam a notar que a vida dentro do mosaico do Zoom pode ser doce.
“De início, as empresas ficaram extremamente preocupadas com a mudança. Não viam futuro sem receber clientes para um cafezinho ou monitorar como os funcionários ocupavam o tempo de trabalho”, analisa Haroldo Matsumoto, especialista em gestão de negócios e sócio diretor da Prosphera Educação Corporativa. “Mas já há um maior entendimento sobre os benefícios de ter colaboradores e parceiros em remoto: os custos com escritório caem muito e ainda há ganho de tempo e eficiência para todos os lados”, completa.
Trabalho remoto
Um levantamento da consultoria Betania Tanure Associados (BTA) mostrou que 43% das empresas brasileiras foram forçadas ao teletrabalho pela pandemia. Nestas, seis em cada dez funcionários foram enviados para casa – uma minoria permaneceu em razão de dificuldades na migração de tecnologia ou por precisarem estar perto de laboratórios ou da linha de montagem. “Muitas empresas projetavam adotar o teletrabalho em um prazo de um ou dois anos, e já vinham dando flexibilidade de horário e colocando na nuvem seus sistemas. Estas foram para o home office com uma enorme vantagem competitiva”, aponta Tais Targa, diretora executiva da Job Hunter, especializada em planejamento de carreira e cultura organizacional.
Quem aderiu à transformação tem percebido a janela de oportunidades trazida pelos novos tempos. A multinacional de contact center Atento realizou uma pesquisa com seus clientes de setores como varejo, financeiro, seguros e telecomunicações. O levantamento verificou que 79% deles pretendem manter o teletrabalho mesmo com o fim do confinamento.
No entanto, dizem que a atuação presencial não será abolida: consideram ideal que os funcionários atuem metade do tempo em casa, e outra metade no escritório. Eis mais um indício da chegada do modelo híbrido. “Talvez este seja o formato no horizonte pós-pandemia: empresas mantendo espaço físico para receber funcionários que trabalhem melhor em conjunto, mas também com todas ferramentas para aqueles que preferem conservar a rotina a distância”, corrobora Targa.
Reinvenção cultural
As empresas híbridas passam por uma revolução gerencial. Alterações nos processos, releitura das políticas de Recursos Humanos, segurança cibernética e redistribuição dos ativos físicos são apenas alguns dos desafios dessa empreitada. O ponto central, no entanto, refere-se à cultura organizacional.
A esmagadora maioria das empresas se estruturou ao longo de décadas para receber diariamente os funcionários, controlar de perto sua jornada, assegurar o sigilo de sistemas de informática e colocar as chefias fisicamente próximas aos times. “A cultura corporativa sempre girou em torno do controle sobre a equipe. Agora, as companhias estão tendo de redescobrir como manter a produtividade sem todo este aparato”, analisa a economista Glória Yacoub, especialista em relações de trabalho.
As próprias estruturas físicas tradicionais, como baias de trabalho individuais, auditórios e refeitórios, estão em xeque. Elas não se tornaram inúteis. Mas requerem uma nova abordagem. Nessa cruzada contra o anacronismo, o departamento de Recursos Humanos terá um desafio redobrado.
A missão do RH inclui gerar métricas para acompanhar o ritmo da nova produtividade, adequar o perfil de captação dos talentos e encontrar meios de promover a coesão entre times que podem só se relacionar pela webcam. As capacitações são outro ponto fundamental. Numa realidade com empresas híbridas, a equipe deverá desenvolver habilidades que não eram requeridas no modelo convencional.
O novo perfil dos colaboradores
Como se vê, a guinada que vem por aí no setor corporativo é ampla – e pode ser traumática em estruturas costumeiramente mais engessadas. O choque digital da Covid-19 deu um empurrãozinho na tarefa de convencimento em relação à necessidade de atualização. Mas a chave para vencer as resistências está na chamada última linha. Os números devem mostrar a eficácia das empresas híbridas — um trabalho que ficará a cargo da área financeira.
Compreender esses novos fatores é crucial para a missão de redesenhar a cultura organizacional. “Aos poucos, estas informações reforçarão uma crença nas lideranças de que um funcionário não precisa atuar do jeito que a chefia gosta: pode trabalhar do seu modo, no seu tempo, e entregar um resultado igual ou ainda melhor do que presencialmente”, diz Raul Marques de Almeida, responsável pelas operações brasileiras da Gallup, consultoria especializada em desenvolvimento e engajamento de equipes.
Nessa jornada, o como, o quando e o onde perdem um pouco a relevância. “As companhias deverão tirar o foco do desempenho dos colaboradores e colocá-los sobre o que efetivamente entregam”, completa Paulo Sardinha, presidente da Associação Brasileira de Recursos Humanos (ABRH). Ou seja, na era das empresas híbridas, o resultado é rei.
Isso significa que o novo modelo de medir (e cobrar) a produtividade se desamarra de critérios subjetivos. É um caminho importante para o desenvolvimento de uma meritocracia plena, com impacto direto nas políticas de cargos e salários e no engajamento do time. Desse modo, a era das empresas híbridas chacoalham a própria atuação dos executivos. “Os gestores precisarão encarar o desafio de se reinventar. E isso inclui entender o caráter imprescindível da tecnologia. Ela é uma aliada permanente daqui em diante”, acrescenta Gustavo Fiuza, CEO da Bem Produtos e Serviços.
Adaptação ao momento
O mercado já disponibiliza uma série de softwares e aplicações em nuvem que monitoram a assiduidade do colaborador aos sistemas da empresa e atualizam, em tempo real, a situação de cada projeto. “Ferramentas adequadas e ágeis para administração e acompanhamento das atividades estarão cada vez mais na agenda das companhias”, projeta Fiuza.
Quem consegue adaptar sua força de trabalho ao novo momento tende a sair ganhando. Foi o que descobriu a Open Box, uma startup da área financeira nascida no Parque Tecnológico da PUCRS. Em março, quando Porto Alegre (RS) confirmou a primeira vítima de coronavírus, a fintech se preparou rapidamente para manter os funcionários em casa, tentando minimizar o prejuízo à produtividade. Os colaboradores receberam notebooks, mesas de suporte, cadeiras e até luminárias.
Também foram acompanhados desde as primeiras semanas por um coach que os ajudava a organizar a produção dentro da nova rotina de trabalho. O rigor dos horários fixos foi abolido, e cada funcionário passou a trabalhar no período mais conveniente – afinal, alguns precisavam se desdobrar para dar atenção aos filhos.
“Somos uma empresa jovem [dois anos de mercado], iniciando nossa cultura organizacional. Isso nos ajudou a fazer mudanças rápidas. Conseguimos entregar todo suporte para evitar a ansiedade do time e garantir a produção”, explica Natalia Braulio, Chief Marketing Officer (CMO). A Open Box trabalha com antecipação de recebíveis para pessoa jurídica, um nicho que se ampliou com a crise. As entregas cresceram 150% em relação ao período pré-pandemia, mostrando que a equipe, mesmo em modelo remoto, deu conta do recado.
Com o bom resultado, a Open Box decidiu manter parcialmente o teletrabalho após a Covid-19. “Estamos avaliando um modelo híbrido para 2021, alternando dias presenciais e remotos na semana. A ideia é manter a flexibilidade sem perder a força da convivência”, explica Braulio.
Separados, mas unidos
O senso de time, ainda que virtual, é essencial para que sejam mantidas competências mais do que desejadas no mundo corporativo, como o trabalho em equipe e o engajamento. Essas conexões, perseguidas pelos setores de RH à base de muito esforço nos últimos anos, sofreram um baque com a pulverização da força de trabalho. “Aquele cafezinho que ajudava os colegas a formarem laços, a descontração do horário do almoço e as conversas olho no olho com os gestores, que tornavam mais claras as expectativas e o reconhecimento pelo bom trabalho, estão tendo de ser substituídos por outras formas de relacionamento”, avalia Glória Yacoub.
O antídoto à distância passa diretamente pela comunicação. As empresas híbridas têm procurado no seu repertório de tecnologias – incluindo plataformas de reuniões e canais em redes sociais – caminhos para manter a equipe andando junta e alinhada aos objetivos do negócio. Não há fórmula pronta, mas especialistas apontam que garantir uma rotina de brainstorming e fazer encontros virtuais mais descontraídos, como um café da manhã coletivo ou uma aula de yoga, são maneiras de manter vivo o espírito de equipe. “O desafio é alimentar este compromisso psicológico em um contexto completamente novo e desafiador para todos”, observa Raul Marques, da Gallup.
Líderes presentes
Assegurar o caráter humano dos negócios é outra responsabilidade que recai sobre os líderes. Eles precisarão cada vez mais olhar individualmente para os colaboradores para saber como estão lidando com as tarefas. Nem todo mundo se adapta ao trabalho solo. Muitas vezes, a rotina fica sobrecarregada por tarefas familiares que ocorrem no mesmo ambiente, em particular durante a pandemia. Mais do que uma relação calcada na hierarquia e na execução, o contato deverá ser mais amistoso e pessoal, olhando o indivíduo em toda sua complexidade. Cultivar laços assim ajuda o líder a ajustar sua carga de cobranças e a descobrir como dar suporte para que o funcionário faça o seu melhor.
Uma pesquisa da Gallup, feita com 1,5 milhão de pessoas em 150 países, mostra como este desafio está longe de ser superado. A quantidade de trabalhadores que consideram seus líderes transparentes acerca da realidade da empresa caiu de 60% no período pré-pandemia para 41% agora. Além disso, baixou de 51% para 42% os que veem seus empregadores preocupados com o bem-estar da equipe.
“Os colaboradores estão sob estresse enorme. O bom líder deverá ajudá-los a equilibrar os âmbitos pessoal e profissional, que se conectaram em definitivo”, diz Débora Brewer, vice-presidente para América Latina e Caribe da Degreed, plataforma de aprimoramento e desenvolvimento de carreiras. Não enfrentar o drama, alerta a executiva, pode desmotivar os melhores talentos e barrar o ímpeto de inovação e de proatividade.
Acolhendo os funcionários
O caso da DBios, empresa paulista de back office em Tecnologia da Informação (TI), pode inspirar líderes a encontrarem seus caminhos para manter as equipes de braços dados. Assim que determinou o trabalho remoto para todos seus 129 funcionários, ainda em março, a DBios criou um comitê formado por diretores e gerentes. O objetivo foi estabelecer um compromisso diário para os gestores debaterem formas de manter as engrenagens rodando e a equipe focada em um momento de profundas incertezas com a economia – e com o desemprego.
Uma das primeiras medidas do grupo foi adotar uma rotina semanal de vídeos compartilhados com os funcionários, nos quais o fundador Dijalma dos Santos detalhava as decisões do comitê e comunicava mudanças importantes, como eventual cancelamento de contrato por algum cliente. Foi criada uma sala virtual para que funcionários, em grupos de dez, conversassem com o diretor de Recursos Humanos e compartilhassem suas angústias e sugestões para o novo momento.
Os líderes também fizeram questão de deixar clara a flexibilização dos horários, para que o funcionário não se constrangesse caso um dia tivesse de ajudar o filho na aula virtual ou levar os pais ao médico, por exemplo. “Uma pesquisa que fizemos mostrou que as pessoas se sentiram acolhidas com as ações e, de fato, sentimos uma melhora nas entregas, inclusive com feedbacks muito positivos dos nossos clientes”, celebra Santos. //
Da sede própria ao escritório na nuvem
Houve um tempo em que possuir sede própria era motivo de orgulho e atestado de pujança para as empresas. Mas isso mudou bastante nos últimos anos. O surgimento de novos modelos imobiliários, a adoção de estratégias de terceirização e o avanço da digitalização diminuíram a importância dessa bandeira e impulsionou a era das empresas híbridas. A sua utilidade, aliás, tende a se tornar ainda mais relativa no pós-pandemia. E a razão é simples: manter um escritório próprio pode deixar de ser um bom negócio.
O aumento do trabalho remoto fará com que equipamentos de informática se tornem ociosos. Já os arquivos físicos estão sendo suplantados pelo armazenamento em nuvem. Assim, investir na compra ou na locação de salas robustas e arcar com os gastos estruturais que elas acarratem deve perder sentido. “A necessidade de grandes espaços corporativos pode mudar drasticamente após a pandemia, atingindo em cheio o mercado imobiliário”, projeta Claudio Fauza, arquiteto e diretor da Alphaz Incorporadora. Um relatório de tendências publicado pela empresa norte-americana de serviços imobiliários Jones Lang LaSalle aponta que o futuro dos escritórios será dominado pelas empresas híbridas.
A reinvenção dos limites
No entanto, a adoção não planejada do home office pode abrir riscos jurídicos para as empresas. O caráter maleável do trabalho remoto empurra diversos elementos das rotinas profissionais para uma zona cinzenta. E isso pode representar um avanço sobre os limites das relações trabalhistas. A lista de infrações vai desde o envio de tarefas fora do horário de trabalho até o uso de equipamentos pessoais dos funcionários sem acordo prévio. Existe, inclusive, uma diferenciação jurídica entre home office e teletrabalho.
O primeiro é definido como um período curto para o trabalho remoto, com regras mais flexíveis. Já o teletrabalho é um regime permanente de serviço prestado fora das sedes das empresas. “O home office é uma forma alternativa de trabalhar, não exige a formulação de adendos ao contrato de trabalho, algo presente no teletrabalho”, compara o advogado André Leonardo Couto, da ALC Advogados. Assim, as empresas que se tornarem híbridas ou mantiverem o trabalho remoto deverão repactuar seus acordos com os empregados. O novo acerto poderá incluir, por exemplo, adicionais por uso de internet ou telefonia particulares.
A questão ganhou ainda mais importância após o fim da validade da Medida Provisória 927, ainda em julho. O dispositivo permitia algumas exceções para o home office. Desde então, voltaram a valer as regras da CLT para teletrabalho. Uma delas é a não obrigação de marcação de jornada quando o trabalhador desempenha suas tarefas em casa, em razão de dificuldade de controle.
Bem: em plena transformação
Se houvesse uma cartilha para lidar com a pandemia, a Bem Produtos e Serviços teria contemplado praticamente todos os itens. A começar pela antecipação. A empresa iniciou seu processo de implementação do home office em 2019. E a testagem de métodos foi fundamental para a adaptação ao distanciamento social – um desafio que teve o fator humano como pauta central.
A Bem realizou uma série de pesquisas para entender como os colaboradores estavam se adaptando ao novo modelo de trabalho em meio à pandemia. Os resultados levaram à criação de uma série de ações pensadas para dar suporte aos times. Foram promovidas lives com palestras sobre temas diversos, incluindo ansiedade, estresse e convivência familiar. Outro ponto alto foi o Boteco em Casa, um happy hour online que contou com intervenções dos diretores, muita música e shows de humor. A Bem chegou a realizar até uma convenção online voltada para os seus vendedores.
As medidas deram certo. Em agosto, a Bem anunciou a manutenção do home office até o fim de 2020. O regime, aliás, não sairá mais da pauta. A Bem já projeta fazer parte do grupo de empresas híbridas, incluindo adaptações nos processos e rearranjo dos espaços físicos.
Publicado na 2ª edição da Revista 20/30. Baixe a versão digital aqui.