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Sofia Esteves: por uma nova dinâmica corporativa

Em 2020, a rotina de trabalho de bilhões de pessoas mudou – e isso não é necessariamente ruim. Quem afirma é Sofia Esteves, fundadora e presidente do conselho do Grupo Cia de Talentos/Bettha. Para ela, a pandemia deixará um legado de amadurecimento para a gestão do capital humano


Ricardo Lacerda, com colaboração de Danielly Oliveira
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por bem2030

Ela se intitula “a tiazona do RH”. Mas não se deixe levar. Sofia Esteves está longe de ser uma típica profissional com perfil quadrado ou conservador.

Suas reflexões costumam estar em consonância com as principais tendências da área de gestão do capital humano mundial. E não é à toa. São mais de três décadas aproximando pessoas e empresas Brasil afora – o que, pelos próprios cálculos, envolve projetos com cerca de 700 organizações e milhões de profissionais. A sabedoria de “tiazona”, portanto, vem de uma vida dedicada ao desenvolvimento de relações interpessoais e às inevitáveis transformações presenciadas no mercado de trabalho – como a que está em curso, impulsionada pela pandemia.

Formada em Psicologia, Sofia Esteves é fundadora e presidente do Conselho do Grupo Cia de Talentos/Bettha, uma das maiores consultorias de Recursos Humanos da América Latina. Em seu dia a dia, no entanto, esta paulistana precisa se desdobrar para abraçar um sem-número de atividades: é professora de MBA e especialização de RH na Fundação Instituto de Administração (FIA) e Fundação Getúlio Vargas (FGV); comentarista e colunista na Globonews, Exame, Valor Econômico e Você S/A; membro do Conselho de organizações como BTG Pactual e Ibmec; e membro do Comitê Estratégico de Pessoas do Hospital Israelita Albert Einstein e do Governo Federal. Mais? Influencer Top Voice do LinkedIn, com 660 mil seguidores, autora de três livros sobre carreira…

Nesta conversa com a reportagem de 20/30, Sofia Esteves fala sobre as mudanças provocadas pelo distanciamento social. Mais do que isso, ela se propõe a avaliar o que, de fato, restará de novo para o mundo do trabalho no pós-Covid. Uma conversa franca, esclarecedora e alvissareira. Apesar do drama provocado pelo maior problema de saúde pública do século 21, as perspectivas são bastante positivas.

A pandemia colocou boa parte do mundo corporativo em home office. Depois de quase um ano, no entanto, algumas pessoas parecem estar estafadas, cansadas do isolamento. Qual é a sua percepção em relação a isso?

É supernatural isso estar acontecendo. O que leva a esse cansaço é o cerceamento do direito de ir e vir. O fato de você se sentir recluso, obrigado a ficar em casa, já é um peso. A gente gosta da liberdade. Outra coisa é depois de mais de seis meses, há uma exaustão de ficar 100% do tempo em frente a uma tela, com carga horária de trabalho muitas vezes maior do que antes. Mas na hora em que todo mundo tiver o livre-arbítrio para decidir se quer ir ao escritório ou ficar em casa, ou mesmo se quer fazer um almoço de troca com o time, será possível modelar isso de acordo com a cultura da empresa e das pessoas. Acho que nunca mais vai voltar a ser 100% presencial. A pandemia acelerou esse movimento de home office.

O modelo híbrido – meio home, meio office – veio para ficar? Quais são suas vantagens?

Antes havia muito receio sobre isso: será que vai dar certo? Como fica a segurança da informação? Como vai ser liderar a distância? Como será a gestão do tempo? As pessoas vão mesmo entregar o seu trabalho ou vão ficar assistindo a filmes? E a pandemia mostrou que sim, as pessoas são responsáveis, trabalham a distância, lideram a distância. E que se pode entregar resultados talvez até com mais qualidade. O que há de melhor nisso tudo é o fim da era do “comando e controle”.

A gente vem do modelo de gestão do militarismo. Nele, os soldados ficam em seus quartéis-generais com os sargentos ao lado, olhando o seu trabalho e dizendo como você deve marchar, que horas você deve suspirar e que horas você deve bater continência. Vivemos isso por muito tempo e aos poucos foi sendo percebida a necessidade de autonomia, de cocriação e de um novo estilo de liderança. Ninguém mais aguenta o sargentão, o chefe tóxico. O que se quer é uma liderança pelo exemplo, pela vulnerabilidade, e que sabe olhar seus próprios pontos fracos.

Sofia Esteves: por uma nova dinâmica corporativa
Rotina intensa: além das atividades à frente do Grupo Cia de Talentos, Sofia Esteves é constantemente requisitada para palestras e eventos corporativos

Esse movimento tem a ver com os jovens de hoje, uma geração mais líquida – conforme o conceito do sociólogo Zygmunt Bauman?

Tem tudo a ver com essa geração, que não admira mais a liderança pelo crachá de líder. A hierarquia para eles não é pela obrigação em se ter respeito, mas pela admiração. É pelo vínculo de confiança criado. Por outro lado, é uma geração mais frágil na forma de se relacionar. E isso não é culpa deles, mas de quem os educou. Se dentro das nossas casas nós criamos filhos “mimimis”, eles vão fazer a mesma coisa em outro lugar, como uma empresa. Não é bem culpa, mas corresponsabilidade.

Concordo que esteja certo não se querer mais o líder que grita. Aquela coisa de “manda quem pode e obedece quem tem juízo” não serve para essa juventude. Mas eles precisam ganhar musculatura, robustez e resiliência. E hoje o que está se dizendo é: “quero um lugar em que eu possa ser eu mesmo, onde eu possa ser respeitado com as minhas características”. Mas também é necessário aprender a respeitar os outros, não se autocentrar em seu próprio umbigo. E isso vale para os dois lados: nem o líder pode achar que é o Superman, nem os mais jovens podem achar que o líder tem que os aceitar como eles são.

Por isso, a palavra mais usada nessa pandemia é empatia. Se eu tiver empatia, vou saber que o meu chefe foi ríspido não porque quis me afetar, mas sim porque está trocando ideias. O que eu sempre digo é: a pessoa é assim ou está assim? Às vezes, estou num momento ruim, estressada ou estou com problemas.

Mas o exercício da empatia está vinculado ao olho no olho, ao sentir o outro. Isso, a distância, dificulta um pouco, não?

Eu não acredito nisso. Acho que não muda nada. Quando você está na tela obrigatoriamente você está concentrado nela. Às vezes, eu estou em uma reunião e é tanta gente olhando para um lado e para o outro, prestando a atenção em outra coisa. Na tela, você olha todo mundo ao mesmo tempo. Então, se você reage de um jeito, todo mundo vai ver e perceber se você está mais tenso ou está mais solto. Claro, você perde o afeto do abraço e do acolhimento, mas a relação é construída da mesma forma.

Como manter o sentimento de equipe com o trabalho remoto?

Acho que o trabalho não deve ser o tempo inteiro assim, distante. Um exemplo nosso, da Cia de Talentos: praticamos home office desde que a empresa foi fundada, há 32 anos. Temos dois pilares com o time, que são excelência na qualidade e no prazo combinado com o cliente. Se você vai fazer suas tarefas à tarde, à noite, no fim de semana ou na praia, tudo bem. A entrega com qualidade e no prazo é o que importa. Mas ter momentos para encontrar o time, em que você celebra, é importante. Já fizemos bingo eletrônico, premiação virtual, festa junina online, gincanas. Antes mesmo da pandemia, trabalhávamos com mesas rotativas, ainda que fosse um número grande de posições. Agora mudamos para um escritório onde deixamos as mesas de um jeito que elas podem ser um centro de convivência. Quando for possível voltar oficialmente ao escritório, a ideia é que as pessoas possam marcar com as suas equipes de um dia fazer uma reunião, ir almoçar ou depois fazer um happy hour.

Como ficarão os coworkings daqui para frente?

Com certeza vão crescer, e eu entendo que haverá um novo modelo de trabalho para os coworkings. A gente, por exemplo, está dentro do WeWork [uma das maiores redes de coworking do mundo]. Isso me dá conforto, pois estou dentro de um espaço em que, se eu precisar aumentar, alugo uma nova sala. E se eu precisar diminuir, eu reduzo. Isso me traz flexibilidade, e por isso é uma forte tendência. Aqui em São Paulo tem gente que mora nos quatro cantos da cidade e é tudo muito longe, com muito trânsito. Então, o que me impede de ter um espaço num coworking na Zona Sul e outro na Zona Norte? Se o meu funcionário não quiser trabalhar da casa dele, ele quer ir para um espaço desses para se concentrar, ter mais de estrutura. Em 2019, estive na China e trabalhei diretamente de um WeWork de lá.

O isolamento social deu mais tempo livre às pessoas – especialmente dentro de casa. A pandemia serviu como um “freio” para rotinas aceleradas, não?

Acho que a gente viveu ondas, ciclos. No início, estimulamos muito a ideia de que o tempo antes usado para ir e vir do trabalho fosse usado para aprender uma nova habilidade. Até porque o aprendizado hoje é algo que tem que ser constante. Com o boom que houve nos cursos gratuitos, inclusive de Harvard e de outras ótimas escolas, se a queixa de vida era tempo e dinheiro, essa desculpa caiu por terra. Mas não precisa dedicar a isso 100% do tempo livre. A importância de eu me qualificar e me diferenciar é fundamental, porque hoje, em um clique, a realidade muda – e eu preciso estar preparado. É preciso desenvolver empatia, resiliência, conhecer os meus valores culturais para analisar se estou na empresa certa e com um propósito certo.

Você está falando em soft skills. Quais estão em evidência?

Na verdade, chamamos isso de essential skills. As habilidades essenciais para você desenvolver na sua carreira. Atrelando isso a pandemia, em primeiro lugar, disparado, está a capacidade de adaptação. É poder rapidamente olhar para o novo cenário e pensar “o que eu tenho que fazer para me reposicionar”. Não adianta ficar chorando. Outra coisa é resistência à frustração. Parte das pessoas, por exemplo, estava fazendo algum projeto supermotivador, que era prioritário e importante, e que da noite para o dia deixou de ser. Ou então estava prestes a ser promovido, ganhar um aumento. Não só isso não aconteceu como piorou.

Então, todo mundo teve que desenvolver a resiliência. Inclusive o medo de perder a saúde, ou mesmo um ente querido, tudo isso desenvolve resiliência. Falamos por muitos anos sobre as skills de inovação, mas ligando a inovação à disrupção, à capacidade de fazer algo que ninguém pensou. Agora a gente volta a olhar para aquela criatividade de olhar coisas que já existem e que podem ser interessantes. Refiro-me a uma inovação muito mais por observação do que por disrupção. Além disso, as capacidades de liderar a distância e de saber gerir o tempo passaram a ser essenciais.

Nesse contexto, qual a importância de se aceitar o erro como algo inerente ao processo?

O brasileiro tem muita dificuldade de avaliar se o erro foi tentando fazer o melhor ou se foi um erro por displicência. Isso é fundamental. Acontece muito aqui no Brasil de o cliente chegar e pedir algo super inovador. Aí a gente vai lá e cria um negócio superinovador e ele pergunta quem já usou. Ora, se quer algo inovador vai precisar correr risco. É importante abrir espaços dentro das organizações para discutir o que de fato é inovação, combinar até que nível de risco é possível avançar.

Sofia Esteves: por uma nova dinâmica corporativa
Cia de Talentos: horizontalidade, equipes formadas majoritariamente por mulheres e colaboração sempre em evidência

Justamente por isso as metodologias ágeis e o pensamento de startup ganham cada vez mais espaço.

Muito. Inclusive aqui entra outra essential skill, que é a colaboração. O mundo vai ser muito mais colaborativo. Desenvolvemos um projeto para capacitar jovens e reduzir o gap do mercado de trabalho que tem o Itaú e o Bradesco juntos. A Roche e a Novartis, duas fortes concorrentes, também participam de um mesmo projeto conosco. A questão da colaboração veio para ficar. Grandes empresas montaram as suas aceleradoras ou se associaram a aceleradoras, a startups. E ainda está tudo sendo balizado por acerto e erro.

Novas tecnologias têm melhorado o dia a dia em diversas áreas. A automação vai suplantar o aspecto humano das organizações?

Ela vai fazer aquilo que um robô é capaz de fazer. Então, ela só vai competir com o humano se essa pessoa só souber fazer aquilo que um robô faz. No entanto, nenhum robô tem a capacidade humana de criar, de interagir e de se relacionar. E nunca vai conseguir. O que me preocupa, nesse contexto, é a tríade pessoas, resultados e clientes. Porque o cliente, alguns anos atrás, ia ao mercado e comprava o que tinha. A empresa decidia quando e qual produto ia lançar. Mas o controle agora está na mão de quem compra. E quem compra não está disposto a esperar. Então, se você não lança logo, outro lança.

Isso não gera uma ansiedade coletiva, uma ânsia pela novidade?

Sim. O que acontece é que, além de satisfazer o cliente, todo mundo tem que dar um resultado para o acionista e tem que dar um resultado para que seja viável continuar reinvestindo. Quanto mais você precisa de inovação, mais precisa de dinheiro e mais precisa vender, ganhar mercado etc. E tem que ser tudo agora, mas no fim acaba todo mundo estourado. Eu, minha equipe. Até quando isso se sustenta? Essa dinâmica tem tomado uma proporção doentia. Vejo muitas pessoas discutindo índices de saúde mental. No entanto, ninguém está estudando ou discutindo a origem desses burnouts – que nunca vêm de uma causa só, e podem estar relacionados inclusive a rotinas altamente positivas.

A pandemia revelou um brasileiro solidário, dedicando tempo e doando recursos. Como esse comportamento influencia na vida profissional?

Pesa muito porque o voluntariado desenvolve todas as habilidades necessárias para o dia a dia do trabalho. Todo esporte coletivo desenvolve habilidades de colaboração, resiliência, liderança, trabalho em equipe, humildade. No voluntariado você passa a ter empatia, pois derruba preconceitos. Espero que isso não seja passageiro e venha para ficar e realmente transformar a vida de muitas pessoas.

“Aquela coisa de ‘manda quem pode e obedece quem tem juízo’ não serve para essa juventude. Mas eles precisam ganhar musculatura, robustez e resiliência.”

Mais do que nunca, há uma tendência de fortalecimento de ações afirmativas por parte das empresas. São os casos de programas voltados a trainees negros e para o público sênior. Qual é a sua percepção?

Trabalhamos um programa de trainees para negros para a Bayer, e foi ela quem fez o primeiro movimento nesse sentido, há seis anos. Eles olharam para todos os níveis e pensaram: “Eu quero capacitar uma grande massa para chegar na liderança”. Começou com programas de estágios com cotas de 20% para negros, depois 50%, até ao ponto de aumentar o trainee para 100%. A Bayer já tem diretor negro, já está formando pessoas negras dentro da organização. Portanto, é preciso ter muita consistência naquilo que se propõe. Não basta resolver trazer algumas pessoas negras para dentro da empresa e pronto. Fico feliz em ver novas iniciativas e sou altamente favorável às ações afirmativas – mas absolutamente contra modismos.

Por fim, o que um recrutador pode ou não perguntar a um candidato em uma seleção de emprego?

Acho que bom senso é sempre importante. Qual a intenção de eu fazer determinada pergunta? Por que eu quero saber se o profissional é casado ou se tem filhos? Se é porque eu tenho o paradigma de que mulher que tem filho tem menos tempo para trabalhar, então não, não pode fazer essa pergunta. Agora, saber para entender o que são valores para um profissional, então pode. É muito melhor perguntar o que ele pensa para o futuro pessoal e profissional. Porque é preciso entender se aquilo que a pessoa busca está de acordo com aquilo que você quer para a sua organização e para o seu time.

Por exemplo, se eu tenho uma filha com uma deficiência física eu preciso contar durante a entrevista. É importante que o meu chefe saiba que talvez eu tenha momentos muito limitados, mas que mesmo assim vou dar o meu melhor e me superar. O que percebo é que a forma de perguntar é o pior. Eu não vou perguntar em uma entrevista de emprego se a pessoa é gay, mas vou perguntar sobre os objetivos de vida dela, como ela está na vida pessoal, e deixar aberto se ela quer comentar alguma coisa nesse sentido. O mais difícil atualmente, e que precisa ser trabalhado, são os vieses inconscientes. Os vieses inconscientes são como eu percebo onde está o meu preconceito. Até porque preconceito é algo que todo mundo tem. Partindo desse pressuposto, preciso saber como acessar o meu viés consciente para, assim, ter maior sensibilidade.

Publicado na 2ª edição da Revista 20/30. Baixe a versão digital aqui.

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