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Bem-vindos aos tempos pós-normais

Um dos principais pensadores da cultura digital no Brasil, Gil Giardelli revela otimismo ao refletir sobre o impacto das novas tecnologias na sociedade


Ricardo Lacerda
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por bem2030

Não estaria errado creditar Gil Giardelli como estudioso de inovação. Também poderia ser especialista em cultura digital, ou então difusor de conceitos ligados à sociedade em rede. A verdade é que esse paulista de 45 anos é tudo isso e um tanto mais. Defensor implacável do potencial da tecnologia para transformar o mundo em um lugar melhor, Giardelli é um dos nomes mais requisitados do Brasil quando o assunto é futuro. E há bons motivos para tanto reconhecimento.

Ele é fundador da consultoria 5ERA e da empresa de tendências e inovações tecnológicas Gaia Creative. Também é sócio da PluginBot, primeira startup da América Latina a integrar chatbots, robôs e humanoides em uma plataforma multicanal com o uso de tecnologia cognitiva. Além disso, é membro da Federação Mundial de Estudos do Futuro (WFSF, na sigla em inglês), organização com sede em Paris, na França, que reúne acadêmicos, profissionais e estudantes de 60 países para discutir soluções inovadoras para a humanidade.

Suas experiências e visões de mundo são compartilhadas em palestras país afora e nas salas de aula de instituições como Insper, Fundação Dom Cabral (FDC) e PUC-RS. Em 2018, Giardelli criou o MBA da Gestão da Mudança e a Transformação Digital para a Confederação Nacional da Indústria (CNI) e acumula passagens como professor convidado na Universidade Stanford, na Califórnia, e no Massachussets Institute of Technology (MIT), em Boston, as duas nos Estados Unidos.

Na entrevista a seguir, ele vai além das perspectivas quanto ao impacto da inovação e da tecnologia na sociedade, propondo reflexões sobre a necessidade de se aumentar a integração social, o fim das fronteiras físicas, o futuro do trabalho e a hiperconectividade. Acompanhe:

Como você classifica o fenômeno da transformação digital?
Trata-se, na verdade, de uma coisa que começou como transformação digital, mas hoje estamos falando de algo muito maior, que é a economia da inteligência artificial e da Sociedade 5.0. A transformação digital colocou tecnologia inteligente nas empresas. Para grande parte delas, isso já está acontecendo. Mas e agora? Tem que olhar o principal, que são as pessoas. A maior mudança não é comprar equipamentos, é promover uma transformação cultural. Quem está muito avançado nesse sentido é o setor financeiro. Agora, as companhias desse segmento precisam acelerar ainda mais, haja vista os movimentos das fintechs e a democratização de serviços bancários. Até pouco tempo atrás, quase 50% da população brasileira não tinha conta em banco. Isso permitiu a entrada de empresas que fazem parte da transformação digital. E a mudança não é apenas do meu concorrente. Ela pode envolver, por exemplo, uma gigante como a Apple, que está virando uma organização de serviços financeiros. Antes, era bem claro identificar quem eram os meus competidores; agora, eles podem vir de onde a gente nem imagina.

Nesse contexto, é normal aparecerem conceitos que confundem as pessoas. O que dizer a respeito da Quarta Revolução Industrial?
A Quarta Revolução Industrial era colocar big data, inteligência artificial, IoT dentro das empresas. Entretanto, em junho de 2019, a cúpula do G-20, liderada pelo Japão, colocou na pauta o que eles chamam de Sociedade 5.0. Isso corrige um equívoco, que é falar em Quarta Revolução Industrial e esquecer o principal, que são as pessoas. Então sai o B2B, sai o B2C e entra o H2H, que é o Human to Human. A Indústria 4.0 faz parte da Sociedade da Informação, que era chamada na academia de Sociedade 4.0. Mas esse momento passou, porque a Era da Informação acabou, pois vivemos agora a Era do Conhecimento. É quando você transforma tudo isso que está conectado – como inteligência artificial, big data, robótica – em conhecimento. E com isso torna a indústria mais inteligente, reduz a emissão de gases de efeito estufa, aumenta a produção, redistribui riqueza. Enfim, com a Sociedade 5.0 a ideia é preencher lacunas sociais e de gênero, minimizando as desigualdades.

Já que você mencionou o protagonismo humano, de que maneira as empresas devem trabalhar a gestão da inovação?
Não existe receita de bolo, mas tenho visto em muitas organizações a criação de comitês onde se discute inovação livre de dogmas e véus. Esses grupos devem se reunir pelo menos uma vez a cada 15 dias, envolver pessoas de todos os escalões – do chão de fábrica à alta gestão – e permitir o debate sobre inovação de igual para igual. a primeira reunião inevitavelmente vai ser caótica, mas a partir dali vai sendo criada, aos poucos, uma cultura alinhada às mais diversas possibilidades de melhoria. A inovação ainda é vista como uma coisa extraordinária, mas pode ser a troca de copos descartáveis por garrafinhas de água individuais. Imagine isso acontecendo dentro de uma organização com 5 mil funcionários.

Você costuma destacar a importância dos chamados makers – ou fazedores. Quem seriam essas pessoas?
Os makers são uma categoria que nasceu com muita força na baía da Califórnia, perto de San Francisco, nos Estados Unidos. Em 2006, houve a percepção de que cientistas estavam isolados, assim como educadores, artistas, entusiastas de tecnologia e outras pessoas que gostavam de “fazer”. Então elas começaram a se reunir em feiras em praças, em fins de semana. E isso começou a ir para dentro das fábricas, das escolas, até ganhar repercussão mundo afora. O princípio dos makers é que, se você souber algo e não compartilhar, ou souber e não fizer, é o mesmo que não saber. Isso coloca de ponta-cabeça tudo que sabíamos sobre conhecimento, onde o que você sabia era guardado consigo. Assim, foi-se o tempo do “faça algo apenas quando tiver certeza”. O mundo está em Beta, e isso é a inovação empírica. Quanto mais você contar a sua história e suas ideias às pessoas, melhor elas ficam. Inovação, afinal, é transformar ideias em algo que seja rentável.

Fala-se que vivemos no chamado Mundo VUCA, acrônimo em inglês para volátil, ambíguo, complexo e incerto. Que mundo é esse?
O conceito de Mundo VUCA foi criado pelas Forças Armadas americanas para explicar a polarização entre União Soviética e Estados Unidos durante a Guerra Fria. Quando analisamos as grandes questões emergentes da sociedade, vemos surgir uma nova Guerra Fria – agora entre China e Estados Unidos, para ver quem vai dominar a Quinta Revolução Industrial. Na Federação Mundial de Estudos do Futuro [WFSF, na sigla, em inglês], que fica em Paris, falamos que sai de cena o Mundo VUCA e entra o que chamamos de tempos pós-normais. Trata-se de algo pós-humano, pós-industrial. São novas formas de governo, as quais ainda nem sequer sabemos como funcionarão, mas que andam carregadas de muita contradição, complexidade e caos. E o remédio para isso é a criação, a conectividade e a colaboração – todas elas coletivas. Eu já não uso mais a expressão Mundo VUCA. Agora, os Tempos Pós-Normais saem dos círculos fechados dos pensamentos de alta economia e começam e chegar à sociedade.

Qual é a complexidade de se falar de tendências, de novos conceitos de sociedade, havendo realidades tão distintas mundo afora?
Olha, ou se faz um mundo de todos e para todos ou teremos um mundo sem paz. Tome-se o exemplo do Chile, que financeiramente é o melhor país da América Latina e, de repente, tem ali uma onda de pessoas que se rebelam por conta da fragilidade de seus empregos. Muita gente vive isso, em vários países – são os chamados precariados. No Reino Unido, vemos o Brexit acenando para o retorno a uma Inglaterra que não existe mais; nos Estados Unidos, Trump prometeu fazer a economia voltar aos anos 1990. Mas esse mundo já passou. O extremismo, tanto da direita quanto da esquerda, faz mal ao mundo. A questão que devemos levantar é se ainda cabem os conceitos de comunismo, socialismo, capitalismo, esquerda e direita em pleno século 21. Repare que são conceitos que criaram força entre a Revolução Francesa [1789] e a Revolução Industrial [1760-1840]. Faz sentido o Brasil ter 35 partidos políticos?

Já é possível perceber a popularização de tecnologias que pouco tempo atrás pareciam muito distantes das pessoas – como inteligência artificial, internet das coisas, machine learning e robôs. O que é possível destacar entre as inovações que chamarão a atenção daqui para frente?
Vamos começar pela manufatura molecular. Tem dois caminhos: um deles é usar o DNA humano, por exemplo, por uma empresa automobilística que está desenvolvendo carros de acordo com a predileção da pessoa por cores. Isso é ciência, porque escolhe o carro azul, verde, amarelo. Isso está no DNA humano. Ainda dentro desse cenário há o que chamamos de “império da conveniência”, que é você usar impressoras 3D, uma tecnologia de litografia, para fazer carros impressos com líquido de metal. Isso já é realidade. Assim como as fazendas verticais. Nos Emirados Árabes, acabaram de abrir uma fazenda de 900 acres totalmente vertical, para produzir as frutas e verduras que serão consumidas em um dos maiores aeroportos do planeta, o de Dubai. Já estamos falando nos globotics, que são as tendências consonantes da globalização e da robótica – ou seja, os imigrantes da inteligência artificial. Significa o fim das fronteiras. Os indivíduos vão trabalhar em outros países sem estarem lá, usando apenas holografia. Atente que isso está acontecendo. O 5G já é um acontecimento no mundo inteiro e tem coisas fantásticas valendo-se dessa tecnologia. É o caso da cerimônia de abertura dos jogos nacionais de baseball na Coreia do Sul, em que apareceu um dragão gigantesco totalmente feito em 5G. Depois dos debates sobre IA, veio o machine learning e, depois, o deep learning. Agora debatemos o 5G, que é o início de um conceito que chamamos de computação quântica e que vai mudar a forma como são feitas as operações intercontinentais, os carros autônomos, o trabalho dos imigrantes.

Quanto ao futuro do trabalho: você acredita que as tecnologias irão se sobrepor às limitações impostas pela política, quebrando fronteiras?
Durante muito tempo falou-se que o mundo digital seria o início da Aldeia Global. Na minha opinião, a Aldeia Global está acontecendo e a gente vai ter que repensar se o conceito de poder concentrado, com presidente, ministros do Supremo etc., atende à sociedade. Precisamos pensar em uma governança global. Não tem a ver só com política, e sim com o novo mundo. O problema do petróleo nas praias brasileiras não é um problema só do Brasil. Assim como um tsunami em Tóquio não diz respeito apenas ao Japão. Ou o que acontece no Himalaia, no Pantanal, na Amazônia. Seus reflexos são do mundo inteiro. Voltando à IA, no meu laboratório [na Pluginbot] trabalhamos com 72 línguas, o que permite falar simultaneamente com qualquer pessoa graças à tradução simultânea baseada em 5G.

Você comentou anteriormente sobre como um desastre em um país pode ter reflexo no outro lado do planeta. Suas perspectivas de futuro são otimistas ou há fundamento em se pensar em um mundo mais distópico?
Eu sou um tecnoativista. E na alta academia existem dois tipos de público. O primeiro são os distópicos, que representam menos de 5% da sociedade científica, de alto conhecimento. Os 95% demais são os utópicos, aqueles que acreditam que o mundo vai ficar muito melhor. Se você entrar num site que se chama ourworldindata.org [nosso mundo em dados], verá que há mais de 3 mil pesquisas sobre a sociedade. Esses estudos se baseiam em dados do mundo inteiro e mostram que melhoramos muito com o passar do tempo. Algo que segue ruim, ainda, é a emissão de gás carbônico. Mas observe perspectiva de vida, taxa de natalidade, redução de mortalidade infantil. Em tudo isso a gente evoluiu. Chegamos numa bifurcação em que teremos um mundo com menos trabalho pesado, menos pessoas fazendo trabalho que não cabe mais ao ser humano – como recolher lixo – e deixar isso para máquinas, ou vamos criar um mundo parecido com o do Black Mirror [série da Netflix], onde há um pequeno grupo dominante que faz com que os demais vivam em prol deles. Mas nós, os tecnoativistas, lutamos diariamente para inserir as pessoas no universo digital.


“Chegamos em uma bifurcação em que teremos um mundo com menos trabalho pesado, e deixaremos isso para máquinas, ou vamos criar um mundo parecido com o do Black Mirror.”


Apesar do avanço das máquinas, há um consenso de que o mercado vai valorizar cada vez mais as soft skills. Como você vê esse desenvolvimento de competências comportamentais?
O primeiro passo é entender que o mundo está mudando e que é preciso ser um estudante por toda a vida. A pessoa pode ter doutorado, mas nunca vai deixar de aprender. Ao mesmo tempo, quanto mais você ensina, mais aprende. Todos devem ser um pouco professores. E não é o educador só no sentido de dar aula, mas em relação à sociedade.

Inclusive, o Fórum Econômico Mundial recomenda aos profissionais do século 21 atributos como empatia, capacidade cognitiva e inteligência emocional.
Exatamente, são os humanos no centro de tudo. Tive o prazer de conhecer Marvin Minsky, professor no MIT que cunhou o conceito de inteligência artificial em 1959. Até o fim da vida, ele era um hippie [Minsky faleceu em 2016, aos 88 anos], um tipo de anarquista da ordem. Era uma pessoa que entendia que sociedade deveria ser para todos. Em geral, indivíduos que criam grandes coisas são muito humanos. Outra qualidade que vivemos muito na academia é a transdisciplinaridade. Você quer ser jornalista, mas tem que ser um datajornalista; quer ser engenheiro, mas tem que ser dataengenheiro. Durante muito tempo dividimos as pessoas em ciências Exatas, Humanas, Biológicas. Agora chegou um momento em que não podemos mais seguir essa divisão. Os problemas são tão complexos que precisamos de transdisciplinaridade.

Qual é a sua opinião sobre a relação entre academia, iniciativa privada e governo no Brasil – a chamada hélice tripla?
Tem uma frase na academia que é muito marcante: “Quando a política entra na academia, a ciência sai pela outra porta”. E isso não tem a ver com questão partidária. A ciência de alto impacto, seja nas Humanas, Exatas ou Biológicas, é apartidária, apolítica e a-religiosa. Os pesquisadores têm direito a ter opinião, a votar, a se manifestar, mas no Brasil e talvez na maioria dos países latinos a academia se tornou mais política e menos científica. Vejo as empresas descrentes tanto com o governo quanto com a academia. Somos uma sociedade da economia criativa, que só acontece quando um confia no outro.

Diferentemente de países como Estados Unidos e Israel, no Brasil não há muita margem para a cultura do erro. É preciso mudar esse mindset para acelerar a disrupção?
Todas as pessoas que acertam hoje erraram em algum momento. Eu tive uma empresa que faliu. Penso que a cultura do erro, dentro da ética, é positiva, importante para a inovação. Aprendi a não ser apenas um cientista, mas a criar e gerenciar equipes. Tive atritos, e não vai existir melhor escola do que a prática. E isso do erro, no Brasil, tem um pouco a ver com a nossa cultura. Veja o caso de Rubens Barrichello: a maioria da população não o considera um vencedor, mesmo ele tendo sido segundo lugar na Fórmula-1. Todos que correram com ele e foram campeões diziam que ele era fundamental à equipe. Será mesmo que ele perdeu? O mesmo acontece com Romero Britto e Paulo Coelho. Temos aí três exemplos de pessoas ridicularizadas no Brasil. Eu não gosto da obra do Romero Britto, já comecei a ler um livro do Paulo Coelho e não gostei, mas respeito muito os três, pois têm trabalhos e carreiras muito dignas, de repercussão mundial. Precisamos celebrar mais a inovação brasileira.

Por falar em inovação, qual é a maturidade da indústria robótica?
Estamos agora com um projeto no ar, que é a GAL, um robô da GOL que está trabalhando no Aeroporto de Guarulhos. Tudo isso até então era empírico, pois faltava uma empresa como a GOL para falar “vamos fazer”. A ideia é implementar também um robô num hospital, para pessoas que sofreram acidentes graves e têm que fazer fisioterapia. Dependendo, leva-se um ano, dois anos em tratamento – que pode ser dolorido, repetitivo. As pessoas ficam irritadas com o fisioterapeuta, com o médico, e há casos internacionais em que o robô ajuda na fisioterapia. Ele entra com voz amiga, sorri, e a pessoa assimila de maneira diferente. Tem muita coisa acontecendo, e fico feliz de ver surgir no Brasil várias empresas de robótica.

O israelense Yuval Harari, um dos principais pensadores da atualidade, não usa smartphone. Todos os anos, Bill Gates se isola numa cabana por uma semana para aliviar a mente. Existe uma fórmula para lidar com a hiperconectividade?
Apesar de toda sua complexidade, o corpo é uma máquina. O cérebro aciona mais de 50 vezes por dia o celular, e a gente acha que não, mas o HD mental vai sendo gasto. Chega oito da noite, a pessoa quer ver TV e dormir. A cabeça fica exausta, falta disposição para ler um livro, uma boa reportagem ou mesmo levantar a cabeça e olhar mais a beleza à nossa volta. Desde que me tornei professor, há onze anos, faço um d-tox que é viajar para algum lugar onde a conexão seja muito difícil ou não exista. Na primeira vez, fui para Botswana fazer um safári fotográfico. Agora mesmo estou indo passar 20 dias em Galápagos. Para mim, o festival mais inovador do mundo é o Burning Man, que acontece no meio do deserto de Nevada, nos Estados Unidos. Ali não tem internet. A desconexão faz criar algo diferente, e você percebe que nada de tão urgente acontece que você não possa estar desconectado. //

Publicado na 1ª edição da Revista 20/30. 

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