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Um papo sobre inclusão e diversidade, com Lisi Lemos

Especialista em transformação digital, Lisiane Lemos se destaca por liderar iniciativas de inclusão e diversidade no mundo corporativo.


Por Ricardo Lacerda
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por bem2030
Lisiane Lemos

Ela sonhava estudar Psicologia, mas se formou em Direito na Universidade Federal de Pelotas (UFPel), na metade sul do Rio Grande do Sul. Durante o curso, apaixonou-se por um tema delicado, sentido na própria pele: a luta pela inclusão racial. Com o objetivo de conhecer melhor suas raízes, passou uma temporada trabalhando para uma ONG em Moçambique, no sudeste do continente africano. Ao voltar ao Brasil, em 2016, foi contratada pela Microsoft para atuar na área de vendas. E foi ali que se deparou com as possibilidades que a tecnologia oferece para a potencialização de negócios e, especialmente, para a ascensão social.  

Três anos depois, Lisiane Lemos saiu de uma gigante do Vale do Silício para outra. Agora, o desafio seria no Google, assumindo posições em nível gerencial até ser convidada, no fim de 2021, a liderar o programa de diversidade, equidade e inclusão da empresa para a América Latina. Cancha para isso ela tem. Inclusive, carrega um currículo bem mais robusto do que seus 32 anos sugerem. Em paralelo à carreira de corporativa, Lisi já criou uma rede que ajuda companhias com políticas de diversidade a incluir profissionais negros em seus quadros. Foi também uma das líderes do Comitê de Igualdade Racial do Grupo Mulheres do Brasil, organização da sociedade civil idealizada pela empresária Luiza Helena Trajano, e cofundou a Rede de Profissionais Negros, primeiro coletivo brasileiro de temática racial focado no mundo corporativo.  

Atualmente, Lisi se vê às voltas com o Conselheira 101. Trata-se de um projeto idealizado para expandir o horizonte da governança corporativa ao incentivar a presença de mulheres negras em conselhos de administração. Tanto empenho já rendeu a ela reconhecimentos como o Forbes Under 30, da revista Forbes, destaque entre as mulheres negras mais influentes do mundo pelo Most Influential People of African Descent (MIPAD), da ONU, e ser eleita uma das Top Voices 2020 do Linkedin. Quer saber mais? Leia a seguir. 

Lisiane Lemos. Créditos: Beatriz Pereira.

Se alguém digita Lisiane Lemos na pesquisa do Google, aparecem múltiplas definições: advogada, palestrante, executiva, professora, ativista em pautas de diversidade e inclusão. Afinal, como você costuma se apresentar? 

Sempre falo que a primeira apresentação a fazer é que sou Lisiane Lemos, filha da Rose e do Nei, irmã do Renan, esposa do Marcos. São as únicas coisas que não vou deixar de ser – as outras são aspectos que eu gosto de fazer, e que podem ser passageiras ou não. Às vezes, tenho foco maior em transformação digital, foco maior em diversidade e inclusão… Às vezes, eu falo sobre ser uma mulher gaúcha que venceu na cidade grande se encontrando em tecnologia. Eu sou todas essas pessoas. Isso é o retrato da forma como enxergo a sociedade. Antigamente, tínhamos a visão de que a pessoa teria uma carreira só, estudaria uma coisa só. Como fiz faculdade de Direito, esperava-se que eu fosse advogada, concursada, juíza, promotora. Mas eu gosto de ter essas diferentes faces para mostrar que a gente pode se reinventar, e que não necessariamente o que eu estudei tem a ver com isso. O fato de eu ter me autodenominado uma especialista em transformação digital também tem muito a ver com a amplitude do tema. O que isso significa para você, para mim ou para o diretor de uma determinada empresa pode ser completamente diferente. 

E o que é transformação digital para você? 

É a habilidade de trazer mudanças para as empresas, para esse novo século e novo momento, e viver no mundo da internet. Mas isso também depende. Para um pequeno negócio, é entrar nas redes sociais; para uma grande empresa, é cortar custos operacionalizando uma fábrica. A própria transformação digital nos permite ser multifacetado.    

Você é formada em Direito, é advogada, mas faz carreira como executiva na área de tecnologia – primeiro na Microsoft, agora no Google. De onde vem essa virada?  

Acho que a última coisa que pensei na vida foi trabalhar com tecnologia. E uma das minhas funções hoje é provocar as pessoas que trabalham para que pensem em tecnologia. Porque eu nunca pensei, nunca fui apresentada a esse momento. Eu pensava ser professora. No fim do Ensino Médio, fui diagnosticada com depressão e comecei a pensar em saúde mental para minorias, e encontrei ali um tabu, com pessoas achando que psiquiatra é coisa de louco. Aí fiz vestibular para Psicologia, mas como não tinha o curso na universidade pública em Pelotas decidi fazer Direito. Na faculdade, descobri educação em Direitos Humanos, que foi essa grande virada para eu pensar o racismo. A visão de diversidade e inclusão, portanto, vem antes da tecnologia em minha vida. Seguindo essa trajetória, sempre me envolvi com voluntariado e, chegando no fim do curso, fui trabalhar numa organização do terceiro setor. Descobri a área de vendas, da qual sempre gostei. 

Foi por causa desse trabalho que você morou na África? 

Eu tinha o sonho de conhecer o continente africano e fui para Moçambique. Acho que muitas pessoas hoje não sabem de onde vêm, e eu queria muito saber. Foi uma experiência desafiadora, de trabalhar numa ONG como diretora de expansões, até que eu sofri um acidente e precisei voltar ao Brasil. Quando retornei, já queria trabalhar com vendas e tinha muito forte comigo a questão do networking – algo em que todas as pessoas deveriam investir mais. E foi assim que cheguei a uma entrevista na Microsoft Brasil e me apaixonei por tecnologia. Foi lá que tive a visão de que a tecnologia pode transformar vidas. Eu atendia governos, então poder olhar coisas como sistemas de FGTS, sistemas de previdência privada, todos esses cadastros de pessoas. Eu pensava ‘cara, tem a minha mãe aí!’. Para mim, era transformador.  

Desde quando você está no Google? Qual é a sua função?  

Entrei em outubro de 2019. É uma longa curta jornada. Trabalhava com vendas, mas no fim de 2021 mudei de cargo, e fiz a virada oficial para a área de diversidade. Agora sou gestora de programa para a estratégia de diversidade para contratação no Google. Dentro da área de contratação no Google, há uma visão de diversidade e inclusão, voltada a minorias, e meu desafio é cuidar disso para a América Latina. Foi bem uma ‘virada de quarentena’. Muito eu disse que não trabalharia com diversidade, pois sou tech, sou de business, que é o que eu amo fazer, mas acho que a quarentena trouxe oportunidades de eu hackear o sistema baseada nesse conhecimento que tenho. São dez anos de vendas, então eu sei exatamente o que é sentar-se na cadeira, o que precisa e o que não precisa. Vai ser a minha terceira ou quarta carreira diferente. Já trabalhei com infraestrutura, vendas, marketing digital, agora vou para diversidade. Isso mostra muito a forma como enxergo o mercado, que não precisamos nascer e morrer do mesmo jeito. Sou uma troublemaker, estou sempre procurando um problema para chamar de meu – mas é sempre um problema super do bem. Não conheço todas as respostas, mas acho que conheço pessoas certas para me ajudarem nessa jornada. 

Há uma ideia de que toda empresa será uma empresa de tecnologia. Hoje muito se fala em big data, analytics, cloud, IoT, blockchain, IA etc. Como essas soluções tem sido usadas de modo a transformar pessoas, negócios? 

Acredito que toda empresa será, sim, uma empresa de tecnologia. Exatamente por ter trabalhado em duas grandes do setor. O segredo é como automatizar, como modernizar e incluir. E posso me ater ao que conheço de perto, que é uma empresa da qual sou conselheira, que é a Kunumi AI, que usa algoritmos para fazer predição relacionada a dados da covid-19, como mapeamento de necessidade de vacinas, leitos etc. Gosto da própria 99jobs, uma startup de recrutamento e seleção, que também usa big data e analytics para contratar profissionais baseados nos valores – em vez de hard skills. Tem a EB Capital, que é um fundo no qual sou conselheira consultiva, que trabalha com ESG, em como investir em empresas que desenvolvam soluções criativas para reduzir consumo de carbono – lembrando que ESG não é só pegada ambiental, claro. 

A pandemia mudou a relação dos negócios com a tecnologia. Inclusive de micro e pequenas empresas, certo? 

Tenho visto muito de marketing digital orientado a dados. Então, é fundamental entregar soluções que façam sentido para cada um dos públicos. E o que me fascinou em trabalhar com isso, no Google, é que o marketing é democrático. Uma microempresa tem o mesmo poder de fogo, se souber utilizá-lo, de uma grande empresa. Você faz bons criativos, conhece seu público, usa listas, soluções personalizadas, geolocalização. Essa é a graça da transformação digital. Eu comecei a carreira de palestrante, com a minha experiência no Google e na Microsoft, justamente para mostrar a pequenos empreendedores que a tecnologia não é um monstro, que é para todo mundo, que pode criar seu próprio conteúdo. Tenho rodado o Brasil falando sobre inovação, pois gosto de brincar com essa megalomania de que todo mundo tem que ser o Elon Musk, fazer foguete e ir para o espaço.  

Aparentemente, a ascensão do trabalho híbrido tornou mais fácil, para as empresas, formar times mais diversificados… 

Esses dias fiz uma palestra e comentei justamente isso. Quando cheguei a São Paulo, não importava que eu havia estudado em uma universidade federal, referendada pela OAB. Sempre teve aquele ‘recorte USP, FGV, ESPM’. Não conseguia furar essa bolha. E, para mim, diversidade são todas essas experiências que a gente carrega, mas que precisa de um recorte especial e de gênero, porque são as minorias mais afetadas. 

Qual é a sua percepção em relação ao movimento de criação de grupos de diversidade dentro das organizações?  

Eu criei um desses grupos, hoje faço parte de outros, ajudei a cofundar alguns, inclusive fazendo benchmarking. Então, acho que são extremamente necessários, e é fundamental que os empresários direcionem orçamento para isso. A grande maioria vive de voluntariado, e aí a pessoa tem que se sobrecarregar, acumulando com o seu trabalho principal. Vejo essa tendência em alta, mas é desafiador fazer modelo, colocar de pé – e muitas vezes sem recurso. Crescemos muito em diversidade nos últimos sete anos. Quando cheguei ao mundo corporativo, tinha alguma coisa, mas a grande maioria “era mato”. Agora tem mais ações afirmativas, tem fundos de investimentos que colocam recursos nesses grupos. Tem uma porção de coisa acontecendo, mas ainda tem um longo caminho a percorrer. Quando se olha estatisticamente a base, tem paridade de mulheres, paridade de negros, lei de cotas para pessoa com deficiência, mas e nos cargos de liderança, nos conselhos de administração? Quem está contratando essas pessoas? São reflexões que tenho feito ultimamente: como modificar base, meio e topo, tudo ao mesmo tempo, de forma sustentável? O grande desafio agora é fazer com que essas pessoas da base evoluam, pois o movimento de subida não é automático. E é possível acelerar isso com o digital, com a tecnologia. 

Lisiane Lemos
Crédito: Reprodução/Instagram.

Mulher, jovem, negra, nascida e criada em uma cidade ao sul do Rio Grande do Sul: você ainda enfrenta desconfianças na rotina de trabalho?  

Sim, ainda me olham com bastante desconfiança. Imagina eu, a pessoa do cabelo verde ou rosa, que chega e fala de transformação digital. Na Microsoft eu ainda era mais tradicionalzinha, usava blazer, salto e tudo mais. Então, acaba que ainda tenho que dar uns carteiraços, o que é bem desconfortável. Quando comecei a dar aula na pós da PUCRS, meus alunos mesmo olhavam com desconfiança – inclusive vi um monte de gente com a idade da minha mãe. Mas a minha aula não é bem uma aula. Gosto de dar um tom de vida real, pois sei exatamente o que é um cliente chato, então trago tudo que passei, acaba sendo mais uma conversa, falando de tendências, de conceitos, exemplos e coisas que vejo no mundo corporativo.  

O Google tem um fundo que incentiva empresas lideradas por profissionais negros – o Black Founders Fund. Como funcionou a última seletiva, da qual você participou? Como é essa experiência?  

É um fundo global para investir em startups lideradas por profissionais negros. Participei do comitê seletivo e, como aprendizado, vi tanta empresa legal que eu não conhecia ou sabia que existia no Brasil – caso da Fluke, que é uma operadora de telefonia, e da Wolo TV, plataforma de streaming de conteúdos negros. No total, em 2021, foram 12 selecionadas. São serviços incríveis que não conhecíamos, que usam alta tecnologia, e não só o aporte financeiro do Google, mas o auxílio em tecnologia, ajuda muito. Participei do comitê seletivo, faço parte do board dos mentores – como faço com algumas startups.  

Quais foram ou quem são os seus mentores, ou profissionais que você mais admira?  

O Gustavo Werneck, CEO da Gerdau, é um cara incrível, que tem feito um trabalho de mudança grande no mercado. É uma inspiração em tudo que está fazendo. A Luiza Helena Trajano também, assim como a Andréa Chamma [conselheira na Braskem, no Fleury e no Banco Votorantim], e grandes referências no mercado, que são minhas amigas, como Rachel Maia [ex-CEO da Lacoste no Brasil], Andréa Cruz [fundadora e CEO da Serh1 Consultoria], Jandaraci Araújo [diretora do Banco do Povo Paulista]. Atualmente, não mentoro ninguém, pois acabaria com o meu tempo, mas tenho conversas esporádicas com muita gente. Sempre penso como escalar o conhecimento que tenho de modo a ajudar mais e mais pessoas. 

Você já participou de inúmeras iniciativas voluntárias voltadas à inclusão. O foco, agora, está no Conselheira 101? 

Sou completamente apaixonada por esse projeto. Para mim, é a coisa mais legal que já fiz na vida – até a próxima que eu inventar. Poder ver que toquei no topo do mundo corporativo, nos conselhos de administração, ter virado 40% da primeira turma já em conselhos consultivos em menos de seis meses, quantas vidas, quantas famílias foram impactadas? O Conselheira 101 é uma série de conversas para executivas negras, é uma ação afirmativa junto a executivas negras que têm muito tempo de carreira corporativa para falar de liderança, mentoria, com profissionais já gabaritados, conselheiros experientes. Temos um set de dez a 15 conversas com cada turma por ano. Na primeira turma, foram 17 executivas; na segunda, 25. Nossa ideia é semear o desejo de elas serem conselheiras. A gente não é workshop, não é formação, não somos o IBGC, mas queremos que as pessoas notem que existe esse horizonte. A reação do mercado tem sido maravilhosa. Na segunda turma, tivemos que excluir mentores, que estavam disputando a tapa para participar. Havia uma demanda reprimida enorme. Somos oito cofundadoras e, como o processo é totalmente digital, nunca nos encontramos ao vivo – e já somos melhores amigas. Iniciamos em agosto de 2020 e estamos trabalhando agora com a segunda turma. 

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