Quando as portas se abriram novamente, após o isolamento imposto pela pandemia, a demanda por encontros presenciais disparou. Havia uma evidente fadiga digital e a forte necessidade das pessoas por interações reais. Shows, festivais, congressos, workshops: ingressos e inscrições para eventos assim esgotavam em velocidade inédita. No ambiente corporativo, todo mundo parecia com saudade da descontração e, especialmente, do networking que o happy hour oferecia. Então, os convites começaram a surgir – alguns agendados para o mesmo dia e hora. “Foi aí que a gente pensou em organizar um treinão, onde todo mundo vai lá, corre, e ainda faz um networking fora do ambiente da bebida”, conta Marcella Falcão, chefe da área de Empresas e Investidores do Cubo Itaú, um dos maiores hubs de inovação e empreendedorismo da América Latina. A ideia saiu do papel em setembro de 2023, com apoio da gestora de fundos SaaSholic, durante a Tech Week de São Paulo. Mais de 50 pessoas, entre founders, investidores e outros atletas amadores, participaram da Run Tech.
Com 28 anos de idade, Marcella corre há seis. Já completou quatro maratonas. A mais recente foi em Buenos Aires, em setembro de A cada prova, ela se sente mais desafiada. A meta é concluir o tradicional percurso de 42,195 km em três horas. Na capital argentina, chegou perto: 3h06, o que a motiva a manter a disciplina. Via de regra, Marcella dorme cedo para acordar às 4h30 e sair para se exercitar. São quatro ou cinco treinos por semana no Parque Ibirapuera. Nesse período, soma pelo menos 70 quilômetros percorridos. “É como se a endorfina que o corpo produz durante a corrida fosse um combustível para o meu dia”, justifica. Para além da disposição e da sensação de bem-estar, a corrida virou um momento de introspecção e criatividade. “Consigo ter várias ideias e soluções enquanto corro, não só para questões profissionais quanto para minhas relações pessoais.”
Marcella faz parte do exército de 13 milhões de corredores no Brasil, segundo estimativa da Tickets Sports, plataforma de inscrições para eventos esportivos. O número é tão grande que se aproxima do último dado oficial sobre praticantes de futebol – modalidade esportiva predileta de 15,3 milhões de brasileiros, segundo o estudo Pnad 2015: Prática de Esporte e Atividade Física, do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Isso acontece porque a corrida é um dos esportes que mais atraem praticantes. Um interesse, aliás, que só aumenta.
Na internet, as buscas pelo termo “corrida” no Brasil tiveram um aumento de pesquisa repentino em junho de 2023 e atingiram seu pico no fim de maio de 2024, de acordo com o Google Trends. Foi o maior volume de pesquisas registrado desde que o Google começou a armazenar esse tipo de informação, em 2004. Com tanta demanda, a oferta subiu na mesma velocidade. Em 2023, a quantidade de provas de rua inscritas na Tickets Sports cresceu 20% – foram 1.421 eventos, ante 1.181 no ano anterior. Mas o número real é bem maior, segundo a Associação Brasileira de Organizadores de Corridas de Rua e Esportes Outdoor (Abraceo), que registrou mais de 150 mil provas de rua ao longo de 2023.
DA SAÚDE AO SOCIAL
Correr é uma das maneiras mais intuitivas e fáceis de se exercitar. Para começar, um bom par de tênis e roupas confortáveis são suficientes. E é possível correr em qualquer lugar, como parques, ruas ou praças. Essa natureza democrática ajudou a popularizar o esporte. Outra razão foi a pandemia. “A corrida era um dos poucos exercícios possíveis de se fazer enquanto havia o distanciamento social”, relembra Andrea Bandeira, professora da Escola de Ciências da Saúde e da Vida da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS). De quebra, o esporte ajudava a melhorar a saúde de quem estava em grupos de risco, diminuindo o sobrepeso e aumentando a capacidade respiratória.
À medida que as restrições da covid-19 eram flexibilizadas, a corrida continuou em alta. Isso porque uma quantidade ainda maior de pessoas havia despertado para seus benefícios físicos e mentais. Inúmeros estudos de longo prazo – alguns envolvendo milhares de participantes – evidenciam isso. As pesquisas também indicam que quem corre não é apenas mais saudável e vive mais; o corredor é uma pessoa mais feliz de modo geral, menos propenso a sofrer com estresse, ansiedade e depressão. Além, é claro, de ter menor risco de desenvolver diabetes, doenças cardiovasculares e alguns tipos de câncer.
“Se você perguntar para dez pessoas por que elas começaram a correr, acho que pelo menos a metade vai falar sobre alguma coisa relacionada a superar uma questão emocionalmente difícil”, constata Andreas Müller, maratonista e chefe de Marketing da plataforma de apostas KTO no Brasil. Pode ser um luto, um divórcio, um acidente, um revés financeiro, um problema de saúde, a insegurança profissional – são muitas possibilidades. Müller, por exemplo, passava por um desses momentos difíceis que a vida impõe. Certo dia, para fugir dos pensamentos intrusivos, calçou os tênis e saiu correndo sem destino. “A princípio, correr não é um processo fisicamente agradável. Você fica sem fôlego, as pernas doem. Mas naquele momento a corrida tirou o meu foco do sofrimento mental. Me concentrei no sofrimento físico. Quando terminei, uns 30 minutos depois, estava me sentindo muito melhor.” Essa foi a virada de chave. Dali em diante, baixou um app e começou a correr com frequência. Perdeu peso e passou a se alimentar melhor. “Uma coisa vai levando a outra”, diz. Passados cinco anos desde aquele primeiro impulso, a corrida está longe de ser um sofrimento: trata-se de uma atividade prazerosa, um exercício mental.
Por isso, a imensa maioria dos corredores não competem uns contra os outros. Eles querem superar a si mesmos. A corrida não é um exercício competitivo, mas meditativo – como um escape para os desafios do cotidiano. “Um dos resultados de correr um pouco mais além do que normalmente corro é me tornar um pouco mais forte. Se estou com raiva, dirijo essa raiva para mim mesmo. Se passo por uma experiência frustrante, eu a uso para me aperfeiçoar”, escreve o japonês Haruki Murakami, no livro Do que falo quando falo de corrida – no qual reflete sobre a influência das corridas em sua vida, inclusive em sua escrita.
É verdade que a cultura da corrida também ganhou tração por causa da trend e da comunidade fortemente engajada. Não por acaso, as redes sociais estão cheias de gente publicando fotos e vídeos enquanto correm. Quando não é isso, são os prints do Strava – em que os usuários do aplicativo compartilham o seu próprio desempenho, como o trajeto, a quantidade de quilômetros percorridos e a duração do treino. A evolução desse comportamento são os clubes de corrida. Neles, as pessoas se encontram para correr e, às vezes, fazem uma atividade social na sequência. Aqueles que se unem estão encontrando não apenas benefícios para a saúde – é mais fácil manter um ritmo de corrida quando você tem pessoas que o apoiam e ajudam no percurso – como também sociais. Os encontros permitem, ainda, conhecer novos amigos e até mesmo parceiros românticos.
Por esse ângulo, a ideia de juntar uma galera do trabalho ou de um evento para correr não parece tão estranha. Afinal, muitas pessoas passam as décadas mais saudáveis da vida em um local que leva a longos períodos de inatividade, sentados em frente a telas. Quando não é isso, são as exaustivas jornadas de trabalho ou o ambiente mentalmente tóxico. Sem falar nos eventos sociais regados a carboidratos, frituras e bebidas alcoólicas. Em substituição, algumas empresas têm investido pesado para promover a felicidade dos seus colaboradores para muito além dos programas de bem-estar e benefícios atrativos. São os casos da Heineken e da Chilli Beans, que incluíram em seus organogramas a posição de chief happiness officer (CHO), uma diretoria específica de felicidade.
POTÊNCIA NO TRABALHO
O Linkedin está repleto de depoimentos com paralelos entre o mundo da corrida e o trabalho. Cristina Palmaka é um excelente exemplo dessa cultura: quando o assunto é maratona, a executiva é a primeira pessoa que vem à mente de muitos. Atual presidente da SAP na América Latina e Caribe, ela corre desde o início dos anos 2000. Desde então, não parou mais. Em março de 2024, conquistou o Abbott World Marathon Majors, um reconhecimento a quem completou a última das seis maratonas mais icônicas do mundo. A prova aconteceu em Tóquio, no Japão. Em um post, Cristina celebrou o feito e compartilhou seis lições de liderança que aprendeu com as provas (leia mais na página XX). Uma delas é o tradicional conceito de que ninguém vence sozinho. “Sempre há uma grande equipe por trás de um grande líder – ou de um grande corredor.”
Eis o senso coletivo da corrida. Apesar de ser uma prova individual, a maratona está longe de ser um esporte solitário. Durante a preparação, o atleta precisa seguir recomendações de técnicos e nutricionistas, além de treinar ao lado dos companheiros de corrida. O que se torna mais fácil com o suporte das assessorias esportivas. Trata-se de um serviço especializado para a prática de atividades físicas, tanto para atletas profissionais quanto amadores. Atualmente, a corrida de rua é a atividade mais ofertada por 87,8% das empresas do segmento, de acordo com uma pesquisa do aplicativo Treino Online. As assessorias oferecem planejamento personalizado, treinos supervisionados, orientação nutricional e fisioterapia – em alguns casos, incluem até mesmo apoio emocional.
“Por mais que você seja capaz de fazer as coisas por sua própria conta, se puder contar com apoio especializado, tende a ser muito melhor”, explica Ivan Correa, CEO da startup SalesBox. Ele começou a correr há pouco mais de seis anos, após um longo período de sedentarismo. Corria na esteira por dez minutos, todos os dias, antes de treinar na academia. Certa vez, durante a corrida, a batida da música que ouvia seguia o mesmo ritmo das passadas. “Acabei alongando a corrida, montei uma playlist e, aos poucos, a corrida ocupou todo o tempo do meu treino.” Depois, um amigo o viu correndo e convidou para fazer uma prova de rua. Correu 10 km, depois se inscreveu em meias-maratonas até mergulhar de cabeça nas provas tradicionais. Foram seis até agora – e ele quer mais.
Cada ciclo de preparação para uma maratona costuma durar entre 12 e 20 semanas. Ele é dividido em diferentes fases que buscam desenvolver a resistência física
e mental do corredor, melhorar a performance e evitar lesões. Várias metas são estabelecidas. À medida em que as atinge, o corredor aumenta a intensidade do treino. “É fundamental ter capacidade de planejamento, esforço e muita disciplina”, explica Patrícia Marco Soares, diretora de Estratégia da agência Farofino e maratonista com sete provas no currículo. “Para alcançar bons resultados no trabalho não é muito diferente”, compara ela, que desde 2005 treina com o apoio de uma assessoria esportiva.
Como se o amparo técnico não bastasse, as assessorias ainda podem oferecer o já mencionado networking. “Pelo menos aqui em São Paulo, o networking que você pode fazer em uma assessoria de corrida top muitas vezes é melhor do que qualquer happy hour que você vai, porque lá estão altos executivos e pessoas que compartilham valores muito parecidos com os seus”, garante Marcella Falcão, do Cubo. Talvez seja por isso que a Run Tech faça tanto sucesso. Desde a primeira edição, em 2023, o Cubo já organizou outras três provas. Em janeiro de 2024, em São Paulo, o evento também reuniu 50 pessoas. Em abril, foram 100 corredores durante o Brazil at Silicon Valley, em Palo Alto (EUA). Em setembro, a prova voltou a São Paulo com 100 corredores durante a SP Tech Week. De olho nesse filão, outras empresas da Faria Lima, bancos e marcas de acessórios esportivos estão programando eventos semelhantes. Tudo para reforçar a importância da saúde e o bem-estar das pessoas – tanto na vida pessoal quanto nos negócios, claro.