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As lições de liderança de Ernest Shackleton


Leonardo Pujol
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por obile

Em março de 2022, as redes sociais e os portais de notícias espalharam pelo mundo uma notável descoberta. Um grupo de pesquisadores havia encontrado no Mar de Weddell, próximo à Antártida, os destroços do Endurance. A novidade causou comoção, pois não se tratava de uma embarcação qualquer. Era o histórico navio comandado por Ernest Shackleton. Desde então, uma nova luz foi lançada à vida e à obra de um dos maiores exploradores polares da história, cujo legado atravessa gerações – e vai muito além do universo das grandes expedições.

O ambiente corporativo é quem mais bebe dessa fonte.

As técnicas de liderança de Ernest Shackleton são tema de cursos na Harvard Business School, por exemplo. Michael H. Dale, ex-presidente da Jaguar North America, guiou boa parte da carreira no exemplo de Shackleton. O investidor americano Jim Cramer, atual apresentador do programa Mad Money, da CNBC, e cofundador da TheStreet.com, atribui a Shackleton o mérito de fazê-lo persistir em busca de bons resultados.

Guilherme Benchimol, cofundador da XP, é outro admirador. “Quando me perguntam qual é o meu livro preferido, nunca respondo um livro de negócios, mas uma história inacreditável de superação.” Ele se refere à obra de Alfred Lansing, A incrível viagem de Shackleton.

De fato, só uma história incrível transformaria alguém que fracassou em quase tudo numa referência para pessoas obstinadas por resultado.

Mas que o leitor não se engane. “Shackleton fracassou apenas quanto ao improvável; quanto ao inimaginável, ele foi bem-sucedido”, resumem a pesquisadora Margot Morrell, que trabalhou em organizações como Nasa, Verizon e Merrill Lynch, e a jornalista Stephanie Capparell, editora do jornal The Wall Street Journal.

Elas são autoras de Shackleton: uma lição de coragem, escrito 20 anos atrás, mas publicado no Brasil apenas em 2021. No livro, Morrell e Capparell analisam as inúmeras características de comando do “chefe”, tendo como pano de fundo sua saga de dedicação e heroísmo numa malfadada (e épica) expedição à Antártida.

A viagem do Endurance: rumo à última conquista

A epopeia começou em agosto de 1914. Aos 40 anos, o anglo-irlandês Ernest Shackleton já era um explorador experiente, tendo pisado na Antártida duas vezes. Na primeira, como membro da tripulação do Discovery (1901-1904). Na segunda ocasião, era um dos líderes da expedição britânica a bordo do Nimrod (1907-1909).

Em ambas as viagens, o objetivo era um só: conquistar o Polo Sul. Com o Discovery, Shackleton foi preterido pelo comandante, que o dispensou da equipe que fez a investida frustrada ao polo.

Com o Nimrod, chegou a apenas 180 quilômetros do objetivo, mas precisou voltar por falta de alimento. As condições na Antártida sempre se mostraram desafiadoras, com ventos de até 300 km/h e temperaturas que beiravam -75ºC.

A conquista do Polo Sul só viria em 1911, pelo norueguês Roald Amundsen. A essa altura, Shackleton decidiu encarar a última aventura que restava naquela parte do mundo: a travessia a pé da Antártida, de quase 3 mil quilômetros. Angariou apoio de alguns mecenas e até do império britânico para investir num dos barcos mais fortes construídos até então. O Endurance era robusto e resistente, equipado com itens da melhor qualidade.

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Reza a lenda que, para contratar a tripulação, Shackleton teria divulgado a seguinte mensagem: “Procuram-se homens para viagem arriscada. Salários pequenos, frio intenso, longos meses na escuridão completa, perigo constante. Retorno duvidoso. Honrarias e reconhecimento em caso de sucesso”.

Nunca se provou a autenticidade do anúncio. Sabe-se, entretanto, que Shackleton realizou dezenas de entrevistas com candidatos, começando por pessoas com quem já tinha trabalhado ou que haviam sido recomendadas por colegas de confiança.

Tão importante quanto as habilidades técnicas eram as comportamentais, como alegria e otimismo. Talentos que Shackleton não possuía eram um diferencial – ele não se sentia ameaçado por eles.

O número 2 do navio foi a contratação mais importante. O escolhido foi Frank Wild, alguém com o mesmo estilo de gerência de Shackleton: experiente, bem humorado, leal e com alta capacidade de liderança. Contando com Wild, 27 homens ficaram sob o comando de Shackleton. Foi o maior grupo liderado por ele.

Ernest Shackleton, liderança e exemplo no mundo corporativo.

Depois de zarpar de Plymouth, Inglaterra, e realizar escalas em Buenos Aires e na ilha Geórgia do Sul, o Endurance finalmente partiu para o destino. Era 5 de dezembro de 1914, verão na Antártida. Significava claridade 24 horas por dia. Isso tende a tornar a navegação mais eficiente.

Mas aquele foi um verão atípico, de condições de gelo muito duras. O barco precisou avançar com cuidado. Quanto mais perto da Antártida, mais obstruído o caminho ficava. Campos de gelo e icebergs cercavam o navio a todo instante. O Endurance se esquivava para frente e para trás no mar de Weddell.

Nesse arranca e para, a navegação fluiu até 18 de janeiro de 1915. Naquele dia, os ventos do norte aglomeraram um enorme banco de gelo, bloqueando o navio a 150 quilômetros do desembarque no continente. O desfecho não era positivo, mas Shackleton teve o cuidado de não transmitir sua decepção aos comandados.

“Desde o início de sua carreira, Shackleton ficou conhecido como um líder que punha seus homens acima de tudo”, escreve a americana Caroline Alexander, autora do livro Endurance: a lendária expedição de Shackleton à Antártida. “Isso inspirava uma confiança inabalável nas decisões que tomava, além de uma lealdade tenaz.”

Por dias a fio, os tripulantes tentaram quebrar o banco de gelo e formar um canal de água. Mas o Endurance estava preso. Em março de 1915, Shackleton anunciou que montariam um acampamento. Passariam o inverno no gelo, para retomar a viagem na primavera.

Da tragédia à redenção: a liderança de Ernest Shackleton

No continente gelado, o sol nasce na primavera e só volta a cair com o término do verão. A partir dali começa a chamada noite polar, uma temporada de escuridão constante. “É uma volta à Idade do Gelo – sem calor, sem vida, sem movimento”, escreve Alfred Lasing. “Poucos homens desacostumados são capazes de combater os efeitos dessa provação, e ela já levou muitas pessoas à loucura.”

Diante desse contexto, Shackleton tratou de ocupar seus homens. Perto deles havia uma enorme banquisa, plana, perfeita para exercícios e jogos como hóquei e futebol ao luar. Eles também se divertiam jogando cartas, dominó e xadrez.

O chefe insistia em cuidados como uma dieta saudável, medidas de segurança e ocupação. Todos os homens revezavam-se nas tarefas domésticas, incluindo a manutenção do navio, o preparo das refeições e o treinamento dos cães – que puxariam os trenós no continente.

A liderança de Ernerst Shackleton sempre falava mais alto. Ele dava feedback constante: elogiava esforços, corrigia erros e se certificava de que seus homens entendiam que todo trabalho era importante. Também recompensava o grupo após atividades bem executadas, além de celebrar aniversários e datas significativas.

Toda essa atenção, porém, raramente era retribuída. “Shackleton estava aprendendo o que ficaria muito claro para ele mais tarde: que a função do líder é muitas vezes uma tarefa solitária e sem agradecimentos, sobretudo em tempos difíceis”, escrevem Morrell e Capparell.

Durante os meses preso no gelo, o Endurance foi arrastado na direção norte. De vez em quando, eventos extremos de ventania o pressionavam. Cada vez mais esmagada, a embarcação gemia – fazendo um barulho perturbador. Até que começou a rachar.

A ordem de abandonar o navio foi dada às cinco da tarde de 27 de outubro de 1915. Os homens se obrigaram a acampar na banquisa. Um mês depois, viram horrorizados o Endurance afundar no mar, sem a chance de comunicar a ninguém o que acontecera (não havia nenhum tipo de rádio transmissor). Só podiam contar com três instáveis barcos salva-vidas retirados do navio.

Shackleton ordenou era que cada membro da tripulação pegasse objetos indispensáveis à sobrevivência, incluindo diários pessoais – e um banjo. O próprio Shackleton dera o exemplo, atirando no gelo itens como um relógio de ouro, escovas de prata e a uma bíblia presentada pela rainha Alexandra. Todos entenderam o recado.

Os homens resistiram a temperaturas tão baixas que podiam ouvir o som da água congelando. O frio penetrante deixava as roupas rígidas e queimava mãos e pés.

Foram semanas assim até que o verão antártico, afinal, trouxe temperaturas mais altas e a promessa de algum alívio. Só que não: o calor do corpo derretia o chão congelado das tendas, fazendo com que acordassem dentro de poças de água fria. A sobrevivência era mantida comendo principalmente carne de pinguim, de foca e às vezes dos cães, uma alimentação fraca em nutrientes, que deixava todos debilitados. 

À medida que flutuavam na direção norte, e que o imenso bloco de gelo diminuía, Shackleton tomou a difícil decisão de embarcar com seus 27 homens rumo a um local seguro. Era 9 de abril de 1916.

O livro Shackleton: uma lição de coragem descreve que, depois de quatro meses de puro tédio, os homens “subitamente foram lançados em uma intensa batalha pela sobrevivência que os levou aos limites da capacidade humana. Lutaram contra o mar por quase uma semana tentando alcançar terra. Sentiram frio, fome, exaustão e tanta sede que suas línguas incharam”.

Ao chegarem à ilha Elephant, decepção: aquela não passava de uma ponta de terra fétida, coberta de esterco de aves marinhas e frequentemente assolada por tempestades.

Sem esmorecer, Shackleton tomou um dos três barcos e escolheu cinco homens para remar em direção à Geórgia do Sul. Depois de duas semanas e 1300 quilômetros de águas turbulentas, finalmente alcançaram o destino. Mas pelo lado errado.

Tiveram, então, de atravessar uma cadeia de montanhas geladas – jamais trilhada – para aportar numa estação baleeira. Mais dez dias passaram, até que o improvável acontecesse. Os baleeiros ficaram pasmos com a fé, esperança e invencibilidade daqueles homens maltratados pela natureza.

Shackleton então reuniu esforços para resgatar os demais membros da tripulação. O que só aconteceu em 30 de agosto, três meses depois. Chegando lá, Shackleton se surpreendeu: todos estavam vivos. Ao desembarcá-los em Punta Arenas, no Chile, ele escreveu à esposa. “Consegui. Não perdi nenhum homem, e atravessamos o inferno.”

A tripulação do Endurance treina os cães de trenó.

Shackleton, o guru corporativo

Nas últimas décadas, tornou-se frequente a contratação de navegadores, escaladores, astronautas, esportistas e toda sorte de pessoas com ocupações desafiadoras para motivar e inspirar o meio profissional.

Essa tendência foi acelerada, vale lembrar, pela popularidade das conferências TED. Acadêmicos, políticos, CEOs e outros oradores também ganharam projeção ao compartilhar grandes histórias com princípios de liderança e soft skills. Entram aqui inteligência emocional, tomada de decisão, criatividade, colaboração, resiliência e persistência.

É o caso de Michael H. Dale, ex-presidente da Jaguar nos EUA. Em 1999, ele fez uma reunião contando a experiência de Shackleton a um grande grupo de vendedores. “Se tiverem o tipo de empenho que Shackleton possuía, com certeza serão capazes de realizar milagres”, afirmou.

O que aconteceu foi mesmo um milagre: as vendas cresceram 56% naquele ano, e ultrapassaram significativamente o recorde de vendas. Claro, há outros elementos que justificam o desempenho da Jaguar, mas Dale sempre atribuiu algum crédito à sua fala. “A coisa mais importante que Shackleton trazia consigo era sua determinação”, falou. “Enquanto se está respirando, há sempre uma chance.”

Marc Randolph, cofundador da Netflix, comparou a decisão de Shackleton – de se lançar ao mar em busca de resgate – à dele própria. Ainda no comecinho do negócio, muito antes de se tornar uma gigante do streaming, a Netflix vendia DVDs, o que representava 99% da receita. Mesmo assim, decidiu direcionar o negócio ao aluguel de filmes – a primeira virada da Netflix.

Nancy Koehn, professora da Harvard Business School, também usa história de Ernest Shackleton em palestras, como exemplo de liderança em tempos de crise – a exemplo do colega Boris Groysberg, que na pandemia chegou a ministrar um curso online direcionado a convidados do BTG Pactual e da gestora Constellation Asset Management. A associação era a seguinte: tão logo percebeu que o Endurance não resistiria ao gelo, Shackleton abandonou seu sonho (a travessia antártica) e mudou a meta (a sobrevivência da tripulação).

Na pandemia, milhares de empresas reestruturaram os planos, e as lideranças precisaram se adaptar junto.

Guardadas as devidas proporções, Shackleton enfrentou – e superou – muitos problemas iguais aos que preocupam os líderes de hoje: reunir um grupo diversificado em prol de um objetivo comum, motivá-lo, enfrentar o tédio e o cansaço, proporcionar ordem e sucesso a um ambiente caótico, trabalhar com recursos limitados, redirecionar o foco.

Na prática, o “chefe” personifica os atributos dos melhores líderes: aqueles que se adaptam a uma revolução acelerada no ambiente de trabalho. Mesmo após a malsucedida expedição na Antártida, Ernest Shackleton exerceu um impacto que perdurou pelo resto da vida dos membros da tripulação do Endurance. E seu legado, agora, serve de exemplo de superação, obstinação e liderança no mundo corporativo. //

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